quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

Os Rosários dos Angolas: Escravos na Bahia setecentista vieram da África Central

"Livro Os Rosários dos Angolas – Irmandades de africanos e crioulos na Bahia Setecentista revela que, na Bahia, presença de escravos oriundos da “nação angola” é mais relevante do que se pensava."


Durante um período da história brasileira, a presença de homens e mulheres de origem centro-africana foi considerada minoria enquanto população escrava na Bahia.

No entanto, o livro Os Rosários dos Angolas – Irmandades de africanos e crioulos na Bahia Setecentista, da historiadora Lucilene Reginaldo, mostra que os únicos escravos que chegaram ininterruptamente ao estado entre os séculos 18 e 19 foram os de “nação angola” – termo utilizado na época para designar os indivíduos provenientes de uma vasta região da África central, escravizados e embarcados para a América a partir do porto de Luanda.

O livro, recentemente lançado pela Editora Alameda e fruto da pesquisa de doutorado realizado na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) pela autora – que atualmente é professora do Departamento de Ciências Humanas e Filosofia da Universidade Estadual de Feira de Santana –, contou com o apoio da FAPESP na modalidade Auxílio à Pesquisa – Publicações.

De acordo com a autora, o estudo teve como objetivo inicial a investigação das irmandades negras na Bahia no século 18. No prefácio do livro, a orientadora de Lucilene, Silvia Hunold Lara, professora do Departamento de História da Unicamp, afirma que as irmandades, “em uma sociedade escravista, eram um importante canal de expressão e preservação de valores e anseios religiosos, sociais e políticos”.

“A proposta foi estudar a irmandade como um espaço importante tanto de vivências como de reelaborações das entidades étnicas oriundas da África e das que foram construídas na diáspora”, disse Lucilene à Agência FAPESP.

“Ao longo da pesquisa, observei que o grupo de africanos conhecido como ‘angolas’ se destacava na Bahia. Eles aparecem de forma recorrente nos arquivos portugueses, criando e organizando irmandades ao longo do século 18, especialmente as dedicadas a Nossa Senhora do Rosário, que eram as mais populares da época”, completou.


No primeiro capítulo do livro, a autora trata da importância das devoções católicas e da participação em irmandades e confrarias na constituição da experiência escrava no império português. Lucilene faz uma breve exposição sobre a conversão do Reino do Congo e o movimento de expansão do catolicismo na África Central, além de explicar a importância e o significado das irmandades e devoções negras no Reino de Angola.

No capítulo seguinte, a autora introduz ao leitor o cenário das irmandades negras na Bahia setecentista, principalmente em Salvador. Já o terceiro capítulo é dedicado a demonstrar a forma e a razão pelas quais os angolas se fizeram visíveis na história das irmandades do Rosário.

No capítulo quatro, a professora procura situar o leitor sobre a presença dos angolas na população escrava e liberta na Bahia do século 18 até meados do século 19. No texto, a pesquisadora discute as representações criadas sobre os angolas, ao longo dos séculos, por viajantes, traficantes e proprietários de escravos.

“Intelectuais da escola baiana de antropologia estabeleceram, no século 19, que foram os africanos ocidentais o grupo majoritário de escravos a chegar à Bahia. Com isso, adotou-se certa hierarquia em relação ao continente africano, sendo os ocidentais os mais evoluídos e os da África-Central, entre os quais das etnias banto e angola, os primitivos, tanto do ponto de vista ideológico como religioso”, destacou a pesquisadora.

O histórico sobre a Irmandade do Rosário das Portas do Carmo é apresentado brevemente no quinto, e último, capítulo. Nele, a autora faz uma análise da irmandade – que dá título ao livro – com base no acervo composto de diversos livros de associados e que compreende um período de 107 anos (de 1719 a 1826).

“Sem dúvida, a maior parte dos escravos africanos que chegaram à América portuguesa veio da África Central. Do ponto de vista numérico, a importância desses povos ainda é pouco avaliada, assim como a contribuição e a influência dos angolas no campo religioso e no cultural”, conclui a professora.

Por Mônica Pileggi
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Os Rosários dos Angolas – Irmandades de africanos e crioulos na Bahia Setecentista
Autora: Lucilene Reginaldo
Lançamento: 2011
Preço: R$ 55
Páginas: 399
Mais informações: www.alamedaeditorial.com.br

Sinopse:

Os Rosários dos Angolas Irmandades de africanos e crioulos na Bahia Setecentista Uma abordagem histórica ampla e arejada, que transcende fronteiras territoriais e pressupostos tacanhos, confere ao livro de Lucilene Reginaldo uma perspectiva inovadora ao iluminar com outras luzes um tema já trilhado pelos estudos da escravidão: a história das confrarias leigas de africanos e crioulos articulada à experiência da escravização e à do Império português.

Focalizando as irmandades setecentistas de Nossa Senhora do Rosário em cidades da África atlântica, da metrópole e da América portuguesa, historiciza os significados que tiveram para a vivência da escravidão e para a elaboração de identidades africanas fora e dentro do continente.

Demonstra que foram um dos locus preferenciais da recuperação de uma humanidade danificada pelas contingências da escravização, tanto por mobilizar sentimentos de pertença, quanto por veicular devoções de livre escolha.

Por outro lado, ao iniciar a análise por uma problemática ainda pouco familiar aos leitores brasileiros – a da expansão do catolicismo na África Central –, sublinha a importância de se levar em conta a história pregressa das sociedades de onde vieram partes significativas da população brasileira.

Na Bahia, segundo o belíssimo título que associa os angolas aos seus rosários, a historiadora contempla as devoções de africanos centrais e seus parceiros crioulos, rompendo com um prisma seletivo que teimou, por muito tempo, em privilegiar determinadas nações em detrimento a outras, hierarquizando-as entre as mais civilizadas e as mais próximas da incivilidade, as mais evoluidas nos assuntos religiosos e as menos habilitadas nessa dimensão.

Com isso, quebra uma lógica evolucionista perversa e resistente que, na perspectiva do segmento branco europeizado que se pretendia superior até mesmo na esfera religiosa, desqualificava de roldão todas as expressões próprias aos setores dominados. Ao contrário disso – e é esta, por fim, uma das lições do livro – trata-se de uma história de religiosidades e sociabilidades interpenetradas e que dialogam entre si por meio de códigos gerados nos termos do Antigo Regime tão bem entendidos por africanos e crioulos, livres e escravos, eles também agentes históricos do mundo atlântico.

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