domingo, 4 de março de 2012

Revolta dos Malês e João José Reis. A historiografia que não sai do corpo que não lhe pertence.


História revoltada e sem carochinha, vista quadro à quadro

João José Reis é um renomado historiador, destes que os pares quase se benzem ao citar o nome. Especialista em revoltas escravas no Brasil. Juro por Deus que, mesmo mexendo com estes temas não sei se já o conhecia. Acho que não. Soube dele porque uma amiga antropóloga, surpresa com o fato de uma teoria minha sobre certo incidente da história de (abra este link e leia) Zumbi de Palmares não ser conhecida por ela – e nem por ninguém – indicou o meu blog para o João ler e opinar (imagina! Me meto em cada uma!). Fiquei muito honrado, claro, mas assustado também. Vai que cometi algum erro historiográfico sério e sou desmascarado na minha condição de humilde pesquisador ‘independente‘?

Ui!

Bem. Que eu saiba João José Reis não leu o meu post sobre Zumbi. Entendo. Uma figura douta destas, um acadêmico ocupadíssimo que deve ser, não fica lendo blogs de qualquer um assim, sem mais nem menos. O fato mais curioso contudo não é este. É que dias depois outra amiga – esta uma mestranda ou doutoranda ainda – me aparece com um texto do mesmo João José Reis, parte de um livro dele que sei agora ser um clássico sobre o assunto (“Rebelião escrava no Brasil. A história do levante dos malês-1835″ Ed. Brasiliense 1986.


O motivo desta outra amiga me recomendar a leitura do texto era inusitado: Segundo ela havia um conteúdo ideológico embutido no texto, muito focado na afirmação da famigerada tese da ‘Supremacia nagô’, um tema caro às leigas elucubrações aqui do tio. Li por alto o texto e tive engulhos francos. Não era apenas ‘nagoista‘ o texto. Era racista também!

Ai, ai, ai!

E aí? O que fazer? Duas amigas, uma (branca) recomenda o historiador a quem ela devota respeito extremo. Outra (negra) me recomenda por razões exatamente opostas: Esta segunda achava muito grave que um historiador – segundo ela – tão aferrado a ideias eugenistas (ou racistas) como João Reis, fosse referencia para todo mundo que estuda história do Brasil, notadamente cultura negra.

Entre a cruz e a calderinha então, me vi obrigado – intimado quase – a ler o João José Reis menos por alto. Este post é fruto desta leitura mais cuidadosa, com contra argumentações minhas como sempre bem pessoais – e as vezes até originais e polêmicas – com as quais ninguém precisa, necessariamente concordar.

Bom ressalvar também que não resenho o livro inteiro, apenas um trecho dele, cerca de 50 páginas, copiadas por minha amiga da biblioteca da USP onde o texto é, como disse de alta referencia. Minhas colocações, portanto são bastante pontuais, pois, utilizo aqui como sempre o método mui prático de comentar matando a cobra e mostrando o pau (comentários diretos sobre trechos originais selecionados). Chamem este método do que quiserem. Eu chamo de “resenha em pílulas”, certo? E as primeiras pílulas de uma série estão aqui:


João Reis em debate: Pílula 01



Para início de conversa, o gráfico a que João se refere não surte todo o efeito desejado (atestar a sua afirmação de que houve um significativo ‘redirecionamento‘ no fluxo do tráfico acentuando a vinda em maior número de escravos da costa leste para a Bahia) porque ele não apresenta um gráfico comparável da situação anterior.

Mas tudo bem. Não há necessidade alguma de se questionar este dado em especial. O que chama a atenção no quadro (ressaltando-se que há a observação de que o gráfico publicado foi ‘adaptado”) é a ótica peculiar que João parece ter usado para leitura dos dados, reforçando sutilmente aspectos com poder de corroborar sua tese e aparentemente omitindo ou subestimando, cuidadosamente outros.

Vamos a eles:

1- Dos 137 escravos citados genericamente no gráfico ( nos dois períodos abordados) como sendo da ‘Costa do Ouro’, não há nenhuma referencia válida sobre a condição étnica destas pessoas. O gráfico apenas diz “Costa” (“negros da Costa”) e “Minas” (“negros Mina”, ou seja: ‘negros do Forte de El Mina‘), expressões quase sinônimas e vagas demais para o caso. Por suposição se pode deduzir que seriam escravos de diversas etnias embarcados no Castelo de El Mina, em Gana, como se sabe um entreposto comercial colonial controlado por Portugal a princípio e pela Holanda e outras potencias europeias após 1642.

Como se sabe, de El Mina vieram também em grande profusão escravos de outras áreas além dos da Costa do Ouro, como gente da área do antigo reino do Kongo, por exemplo já nesta ocasião principal fonte de escravos para as colônias portuguesas e as Américas em geral. A população do Kilombo de Palmares, por exemplo (que se organiza antes de 1640), formada por maioria étnica Bakongo – ‘bantu’- provavelmente é oriunda, em boa parte do Castelo de El Mina (boa parte veio também de levas de prisioneiros de guerra em batalhas perdidas por angolanos e congolesas contra Portugal ou Holanda.

A ausência deste dado essencial atrapalha bastante a argumentação de João, pois, a identificação de escravos não yoruba-haussá neste contingente sem etnia definida no gráfico (quase 20% em 1810/11) mudaria o quadro totalmente, impactando as estatísticas a favor de um aumento da cota de gente bantu . É preciso se ressaltar fortemente também que com a perda do controle do tráfico de escravos na Costa do Ouro em 1642, Portugal tinha acesso restrito – e caro – à cargas de escravos daquela região, transferindo suas prioridades logísticas, gradativamente para portos mais ao sul, Congo e Angola, basicamente (Nsoyo, Luanda, Benguela) e Inhambane em Moçambique.

2- Aliás, ainda comparando os dados deste mesmo gráfico, pode-se observar que, ao contrário do que João afirma, o contingente de gente yoruba desembarcada nesta época, praticamente não se alterou nos dois períodos (’18′ em 1805/6, ’22′ em 1810/11) a quantidade de haussás também não se altera (’12′ em 1805/6, ’14′ em 1810/11) o que enfraquece mais ainda o argumento central da tese do historiador.

Na verdade o que causa impacto significativo mesmo neste quadro de 1810/11 é o aumento de cerca de 1/3 de gente do Dahomey (ou Jejes) por razões que podem ser melhor identificadas se cruzarmos estes dados com a história do tráfico na região do reino do Dahomey na época.

Há, com efeito uma diminuição substancial no desembarque de gente bantu entre os dois períodos abordados no quadro, mas do mesmo modo pode-se se deduzir que o tráfico transatlântico de escravos mais massivo e planejado para o Brasil mudou de direção com o incremento da mineração em Minas Gerais (meados para o final do séc.18) e posteriormente para as plantations do interior da província do Rio de Janeiro (do início para meados do séc. 19). Era óbvio que o fluxo de escravos diminuiria em termos absolutos para Salvador (embora o fluxo de gente da costa leste – yoruba-hausssás - aumentasse).

Este aumento da chegada de gente yoruba-hausá para Salvador neste período, (muito bem abordado por Pierre Verger em “Fluxo e Refluxo – Do Tráfico de Escravos Entre o Golfo do Benin e a Bahia de Todos os Santos”) aliás é usado de maneira bem ingênua por alguns historiadores como prova de que nesta época a população de escravos da costa leste – nem sempre com os yoruba em maior número – teria ‘aumentado‘ no Brasil, suplantando a população bantu.

É muito ingênuo o raciocínio – usado as vezes de forma oportunista por alguns – porque os dados (no caso de João Reis inclusive) se referem apenas e especificamente à Salvador. Como se sabe, se Salvador não representa nem mesmo a Bahia, não poderia jamais representar o Brasil. Salvador e a Bahia não podem continuar a serem considerados microcosmos da escravidão – e da cultura negra do Brasil. Isto é um antigo equívoco historiográfico que precisa ser urgentemente superado.

O que provavelmente ocorreu foi que, como disse acima, na origem – deslocando-se definitivamente para a área Congo Angola – e no destino – deslocando-se para o sudeste do Brasil – a lógica geopolítica do comercio escravista se alterou, ficando Salvador restrito a um, cada vez mais incipiente, comercio de escravos da costa leste (fluxo que, praticamente se encerra depois de 1831, com a repressão inglesa ao tráfico de gente africana).

Como se pode observar lendo o texto mais atentamente, João evita cuidadosamente a adoção da expressão ‘bantu‘. Usa o termo ‘angolanos‘, ainda impreciso também, pois, não é um termo etnologicamente adequado (o correto seria usar os termos, ‘Bakongo‘, Kimbundo‘, etc.) João em contrapartida foge também da expressão ‘sudaneses‘, velho termo adotado por Nina Rodrigues. Com efeito em toda esta nossa análise chama muita atenção esta semelhança das teses e argumentações de João com as velhas e superadas teorias de Nina Rodrigues.

Embora ele reconheça em certas partes do texto que o termo ‘sudaneses‘ é incorreto, na prática, ao juntar os negros oriundos do Golfo do Benin num mesmo saco de gatos étnico, acaba repetindo e reforçando todos os equívocos de Nina, erros crassos como se sabe cometidos há mais de um século e injustificáveis numa historiografia mais atual.

Este equívoco clássico – o pecado original da etnologia de Nina Rodrigues – aparece particularmente claro na omissão sistemática que João Reis faz do caráter legitimamente africano dos escravos ‘angolanos‘ chegados na Bahia, tratados sempre por ele, quase que pejorativamente como ‘crioulos‘, com a conotação de ‘impuros‘.

João na verdade parece subestimar de forma renitente ou, simplesmente ignorar – omitir – a existência na Bahia do início do século 19 de escravos recém-chegados da área etnolinguística bantu . Neste sentido a subestimação deliberada deste grupo – em qualidade e quantidade – a desqualificação de sua influencia na história do negro baiano (e na de suas revoltas) e na cultura africana na região de uma maneira geral é o traço mais evidente de suas intenções ideológicas submersas.

João Reis em debate: Pílula 02


No trecho de João Reis assinalado acima, quem afirma que os negros da costa leste africana que chegavam à Bahia no início do século 19 eram especialmente perigosos, um “alto risco para a paz escravista”, o Conde da Ponte, é uma fonte colonial, oficial e sob a qual, obviamente historiadores perspicazes como João devem lidar com muito cuidado, porque são fontes suspeitas que ora reforçam interesses coloniais superiores, ora omitem ou falseiam dados por diversas intenções individuais, subjetivas demais para serem levadas ao pé da letra, mas vá lá que seja.

Fica a impressão por isto mesmo que a fonte talvez tenha sido usada aqui como referencia porque serve para corroborar a tese central do autor: A de que os yoruba (ou os negros oriundos do Golfo do Benin) eram valorosíssimos guerreiros, ‘superiores’ neste aspecto aos demais. A afirmação, para mim um tanto apriorística é reforçada apenas pela tese do nigeriano E. Adeny Oroge “The Institution of slavery in Yorubaland” que não é de modo algum, pelo que presumo um estudo amplo sobre a impetuosidade guerreira dos africanos em geral (a tese de E. A. Oroge, pelo que me lembro, é usada também por Luiz Nicolau Parès em estudos ligados ao estudo do fenômeno da ‘nagoização‘ e da invenção do Candomblé em Salvador, BA do século 19).

De todo modo, nada há de questionável na afirmação (ou opinião) em si, mas ora, convenhamos que sob as mesmas circunstancias sociais e históricas estavam sujeitos os africanos aqui chegados oriundos de outras regiões, gente da área bantu inclusive (bastaria dar uma olhada, por exemplo nas conflituosas relações entre o Reino do Kongo, seus vizinhos e o invasor português neste mesmo período e nas guerras interétnicas no Sul da África e inúmeros outros exemplos no continente inteiro).

Esta hipótese…’etnogeneticista‘ da ‘impetuosidade guerreira superior’ original, portanto, caso fosse factível, não parece razoável que tivesse sido – como João parece enfaticamente afirmar – um atributo exclusivo dos yoruba e dos haussás. Não existem nesta parte do texto a princípio – João não os demonstra suficientemente – elementos que corroborem esta afirmação. As alegações, portanto podendo ser generalizadas para, praticamente todas as demais nações africanas que nos cederam escravos, é muito tendenciosa, capciosa mesmo a meu ver.


(Guerreiros Bantu. Filme Zulu Dawn 1979)
Em outras partes – as quais comentarei mais adiante – o texto de João Reis está cheio de tentativas de ser comparativo a este respeito, relacionando hierarquicamente atributos superiores dos yoruba-haussás em relação à uma suposta (e atávica) inferioridade ‘crioula‘ e/ou bantu (‘angolana‘ no caso), mas o fato de ‘sugerir‘ isto sem criar nenhum termo de comparação ou parâmetro válido que justifique esta sua… superestimação, esta adulação aos yoruba-haussás, o excessivo, o exagerado destaque dado ao ‘espírito guerreiro’ destes ‘oriundos do Golfo do Benin’ neste caso é que contamina a tese de João Reis com intenções ideológicas estranhas e questionáveis. É delas que estamos tentando tratar aqui.

João Reis em debate: Pílula 03


A percentagem de escravos ‘crioulos’ libertos, por exemplo é um dado inócuo para a argumentação. Afinal, tratava-se de uma revolta islamica, uma ‘jihad‘ da iniciativa de negros yoruba-haussás (entre os quais inclusive muitos libertos – 48%). O dado solto assim no meio do enunciado carece de propósito. Afinal porque razão negros libertos não muçulmanos (ou não nagôs) deveriam se envolver numa revolta tão especificamente ligada a um grupo étnico religioso?

(O dado visto por outro ângulo serve inclusive para reforçar o caráter religioso da revolta – que João subestima – reduzindo a sua condição de ‘revolta escrava’ ao meu ver exagerado pela historiografia ‘oficial’ do Brasil)

A propósito vale ressaltar que existem relatos idôneos que dão conta de que este tipo de adesão de ‘crioulos‘ na Revolta dos Malês seria indesejado – e até rechaçado – pelo revoltosos mais radicais que consideravam estes ‘crioulos‘ (e todos os outros que não fossem malês) ‘infiéis‘, inimigos do islã Por isto ou por aquilo, com certeza a “ausência do negro brasileiro ou ‘crioulo’ ” na Revolta dos Malês precisa ser explicada de maneira menos grosseira e simplista, pois, as razões podem ser as mais diversas. Este fator, colocado assim eugenisticamente como João Reis coloca, não explica nada.

Esta associação direta entre ‘negro africano puro e superior’ e ‘negro brasileiro impuro e inferior’ que aparece muito explicitamente no texto do renomado historiador é o lado mais lamentável de seu discurso.

Infelizmente só se encontra algum meio de compreender as razões obscuras desta argumentação de João Reis – a tal ‘passividade crioula’ – quanto se desconfia da existência nela de uma mal disfarçada intenção de depreciar o caráter, a moral guerreira dos ‘crioulos, cabras e mulatos’ para, em contrapartida reforçar a tese da superioridade moral dos ‘aguerridos’ africanos, e indiretamente, por vias transversas, afirmar a surrada teoria da ‘supremacia nagô-haussá.

Quem tiver outra versão que me convença. Tudo fica mais claro quando se ilumina o que está obscuro com outras luzes menos distraídas.

Aliás – disse isto em meu livro – estas classificações grosseiramente eugenistas usadas por João Reis (como não se aperceber disto?), transcendem um racismo antiquado e nada sutil que perpassa todo o texto. Como se sabe estas categorias (‘cabra’, ‘crioulo’, ‘mulato’) não possuem mais nenhum valor etnológico. Este tipo de categorização – estou certo de que o historiador sabe disto melhor do que eu – era muito utilizada pelo regime escravista (‘boçais’, ‘ladinos’, ‘crioulos’, ‘cabras’…) com as finalidades as mais abjetas, servindo inclusive, até recentemente como modelo oficial para a classificação de indivíduos em regimes racistas como o ‘apartheid‘ da África do Sul, e a ‘lei do indigenato’ do colonialismo português, por exemplo.

Não é mais cientificamente aceitável se relacionar assim, diretamente ‘impetuosidade guerreira’ – ou qualquer outro atributo individual ou grupal – com o fato de uma pessoa ser ou não ser miscigenada (“pura” ou “impura”?) ou ter ou não ter nascido na África ou no Brasil. Isto é racismo grosseiro. Há hoje absoluto consenso quanto a isto.

Qualquer etnólogo de esquina sabe que a geografia e a genética não são fatores, exatamente determinantes da cultura ou dos modos de ser de um grupo social. Um negro – escravo ou liberto – nascido no Brasil filho de dois africanos (ou não) e vivendo isolado num ambiente cultural com pessoas de origem semelhante a sua, será etnicamente igual a um outro nascido na África.

Estes parâmetros eugenistas, enfim não são válidos para se analisar a participação de africanos e crioulos em qualquer evento histórico, muito menos numa Revolta que, afinal era… ‘dos Malês’.

(Para quem ainda não se ligou a dica: ‘Malê” (“Imale“) é a palavra do vernáculo yoruba para “muçulmano“)

Minha amiga negra para mim, infelizmente estava certa em suas suspeitas. Minha amiga branca talvez tenha lido o livro com outros olhos…ou outros óculos, como saber? O certo é que a contradição “negro africano heroico, rebelde” versus ‘negro brasileiro covarde, passivo‘ fulcro deste trecho da tese de João José- inegável, porque está explícito – mesmo no estrito contexto da Revolta dos Malês é um conceito absurdo e inaceitável como ciência. Não vejo isto como historiografia isenta ou séria. É o que eu acho.

Conta outra.

(Daqui a pouco a gente volta)
Spírito Santo

http://spiritosanto.wordpress.com/2012/03/03/revolta-dos-males-e-joao-reis-a-historiografia-que-nao-sai-do-corpo-que-nao-lhe-pertence/