domingo, 4 de março de 2012

Revolta dos Malês e João José Reis. A historiografia que não sai do corpo que não lhe pertence.


História revoltada e sem carochinha, vista quadro à quadro

João José Reis é um renomado historiador, destes que os pares quase se benzem ao citar o nome. Especialista em revoltas escravas no Brasil. Juro por Deus que, mesmo mexendo com estes temas não sei se já o conhecia. Acho que não. Soube dele porque uma amiga antropóloga, surpresa com o fato de uma teoria minha sobre certo incidente da história de (abra este link e leia) Zumbi de Palmares não ser conhecida por ela – e nem por ninguém – indicou o meu blog para o João ler e opinar (imagina! Me meto em cada uma!). Fiquei muito honrado, claro, mas assustado também. Vai que cometi algum erro historiográfico sério e sou desmascarado na minha condição de humilde pesquisador ‘independente‘?

Ui!

Bem. Que eu saiba João José Reis não leu o meu post sobre Zumbi. Entendo. Uma figura douta destas, um acadêmico ocupadíssimo que deve ser, não fica lendo blogs de qualquer um assim, sem mais nem menos. O fato mais curioso contudo não é este. É que dias depois outra amiga – esta uma mestranda ou doutoranda ainda – me aparece com um texto do mesmo João José Reis, parte de um livro dele que sei agora ser um clássico sobre o assunto (“Rebelião escrava no Brasil. A história do levante dos malês-1835″ Ed. Brasiliense 1986.


O motivo desta outra amiga me recomendar a leitura do texto era inusitado: Segundo ela havia um conteúdo ideológico embutido no texto, muito focado na afirmação da famigerada tese da ‘Supremacia nagô’, um tema caro às leigas elucubrações aqui do tio. Li por alto o texto e tive engulhos francos. Não era apenas ‘nagoista‘ o texto. Era racista também!

Ai, ai, ai!

E aí? O que fazer? Duas amigas, uma (branca) recomenda o historiador a quem ela devota respeito extremo. Outra (negra) me recomenda por razões exatamente opostas: Esta segunda achava muito grave que um historiador – segundo ela – tão aferrado a ideias eugenistas (ou racistas) como João Reis, fosse referencia para todo mundo que estuda história do Brasil, notadamente cultura negra.

Entre a cruz e a calderinha então, me vi obrigado – intimado quase – a ler o João José Reis menos por alto. Este post é fruto desta leitura mais cuidadosa, com contra argumentações minhas como sempre bem pessoais – e as vezes até originais e polêmicas – com as quais ninguém precisa, necessariamente concordar.

Bom ressalvar também que não resenho o livro inteiro, apenas um trecho dele, cerca de 50 páginas, copiadas por minha amiga da biblioteca da USP onde o texto é, como disse de alta referencia. Minhas colocações, portanto são bastante pontuais, pois, utilizo aqui como sempre o método mui prático de comentar matando a cobra e mostrando o pau (comentários diretos sobre trechos originais selecionados). Chamem este método do que quiserem. Eu chamo de “resenha em pílulas”, certo? E as primeiras pílulas de uma série estão aqui:


João Reis em debate: Pílula 01



Para início de conversa, o gráfico a que João se refere não surte todo o efeito desejado (atestar a sua afirmação de que houve um significativo ‘redirecionamento‘ no fluxo do tráfico acentuando a vinda em maior número de escravos da costa leste para a Bahia) porque ele não apresenta um gráfico comparável da situação anterior.

Mas tudo bem. Não há necessidade alguma de se questionar este dado em especial. O que chama a atenção no quadro (ressaltando-se que há a observação de que o gráfico publicado foi ‘adaptado”) é a ótica peculiar que João parece ter usado para leitura dos dados, reforçando sutilmente aspectos com poder de corroborar sua tese e aparentemente omitindo ou subestimando, cuidadosamente outros.

Vamos a eles:

1- Dos 137 escravos citados genericamente no gráfico ( nos dois períodos abordados) como sendo da ‘Costa do Ouro’, não há nenhuma referencia válida sobre a condição étnica destas pessoas. O gráfico apenas diz “Costa” (“negros da Costa”) e “Minas” (“negros Mina”, ou seja: ‘negros do Forte de El Mina‘), expressões quase sinônimas e vagas demais para o caso. Por suposição se pode deduzir que seriam escravos de diversas etnias embarcados no Castelo de El Mina, em Gana, como se sabe um entreposto comercial colonial controlado por Portugal a princípio e pela Holanda e outras potencias europeias após 1642.

Como se sabe, de El Mina vieram também em grande profusão escravos de outras áreas além dos da Costa do Ouro, como gente da área do antigo reino do Kongo, por exemplo já nesta ocasião principal fonte de escravos para as colônias portuguesas e as Américas em geral. A população do Kilombo de Palmares, por exemplo (que se organiza antes de 1640), formada por maioria étnica Bakongo – ‘bantu’- provavelmente é oriunda, em boa parte do Castelo de El Mina (boa parte veio também de levas de prisioneiros de guerra em batalhas perdidas por angolanos e congolesas contra Portugal ou Holanda.

A ausência deste dado essencial atrapalha bastante a argumentação de João, pois, a identificação de escravos não yoruba-haussá neste contingente sem etnia definida no gráfico (quase 20% em 1810/11) mudaria o quadro totalmente, impactando as estatísticas a favor de um aumento da cota de gente bantu . É preciso se ressaltar fortemente também que com a perda do controle do tráfico de escravos na Costa do Ouro em 1642, Portugal tinha acesso restrito – e caro – à cargas de escravos daquela região, transferindo suas prioridades logísticas, gradativamente para portos mais ao sul, Congo e Angola, basicamente (Nsoyo, Luanda, Benguela) e Inhambane em Moçambique.

2- Aliás, ainda comparando os dados deste mesmo gráfico, pode-se observar que, ao contrário do que João afirma, o contingente de gente yoruba desembarcada nesta época, praticamente não se alterou nos dois períodos (’18′ em 1805/6, ’22′ em 1810/11) a quantidade de haussás também não se altera (’12′ em 1805/6, ’14′ em 1810/11) o que enfraquece mais ainda o argumento central da tese do historiador.

Na verdade o que causa impacto significativo mesmo neste quadro de 1810/11 é o aumento de cerca de 1/3 de gente do Dahomey (ou Jejes) por razões que podem ser melhor identificadas se cruzarmos estes dados com a história do tráfico na região do reino do Dahomey na época.

Há, com efeito uma diminuição substancial no desembarque de gente bantu entre os dois períodos abordados no quadro, mas do mesmo modo pode-se se deduzir que o tráfico transatlântico de escravos mais massivo e planejado para o Brasil mudou de direção com o incremento da mineração em Minas Gerais (meados para o final do séc.18) e posteriormente para as plantations do interior da província do Rio de Janeiro (do início para meados do séc. 19). Era óbvio que o fluxo de escravos diminuiria em termos absolutos para Salvador (embora o fluxo de gente da costa leste – yoruba-hausssás - aumentasse).

Este aumento da chegada de gente yoruba-hausá para Salvador neste período, (muito bem abordado por Pierre Verger em “Fluxo e Refluxo – Do Tráfico de Escravos Entre o Golfo do Benin e a Bahia de Todos os Santos”) aliás é usado de maneira bem ingênua por alguns historiadores como prova de que nesta época a população de escravos da costa leste – nem sempre com os yoruba em maior número – teria ‘aumentado‘ no Brasil, suplantando a população bantu.

É muito ingênuo o raciocínio – usado as vezes de forma oportunista por alguns – porque os dados (no caso de João Reis inclusive) se referem apenas e especificamente à Salvador. Como se sabe, se Salvador não representa nem mesmo a Bahia, não poderia jamais representar o Brasil. Salvador e a Bahia não podem continuar a serem considerados microcosmos da escravidão – e da cultura negra do Brasil. Isto é um antigo equívoco historiográfico que precisa ser urgentemente superado.

O que provavelmente ocorreu foi que, como disse acima, na origem – deslocando-se definitivamente para a área Congo Angola – e no destino – deslocando-se para o sudeste do Brasil – a lógica geopolítica do comercio escravista se alterou, ficando Salvador restrito a um, cada vez mais incipiente, comercio de escravos da costa leste (fluxo que, praticamente se encerra depois de 1831, com a repressão inglesa ao tráfico de gente africana).

Como se pode observar lendo o texto mais atentamente, João evita cuidadosamente a adoção da expressão ‘bantu‘. Usa o termo ‘angolanos‘, ainda impreciso também, pois, não é um termo etnologicamente adequado (o correto seria usar os termos, ‘Bakongo‘, Kimbundo‘, etc.) João em contrapartida foge também da expressão ‘sudaneses‘, velho termo adotado por Nina Rodrigues. Com efeito em toda esta nossa análise chama muita atenção esta semelhança das teses e argumentações de João com as velhas e superadas teorias de Nina Rodrigues.

Embora ele reconheça em certas partes do texto que o termo ‘sudaneses‘ é incorreto, na prática, ao juntar os negros oriundos do Golfo do Benin num mesmo saco de gatos étnico, acaba repetindo e reforçando todos os equívocos de Nina, erros crassos como se sabe cometidos há mais de um século e injustificáveis numa historiografia mais atual.

Este equívoco clássico – o pecado original da etnologia de Nina Rodrigues – aparece particularmente claro na omissão sistemática que João Reis faz do caráter legitimamente africano dos escravos ‘angolanos‘ chegados na Bahia, tratados sempre por ele, quase que pejorativamente como ‘crioulos‘, com a conotação de ‘impuros‘.

João na verdade parece subestimar de forma renitente ou, simplesmente ignorar – omitir – a existência na Bahia do início do século 19 de escravos recém-chegados da área etnolinguística bantu . Neste sentido a subestimação deliberada deste grupo – em qualidade e quantidade – a desqualificação de sua influencia na história do negro baiano (e na de suas revoltas) e na cultura africana na região de uma maneira geral é o traço mais evidente de suas intenções ideológicas submersas.

João Reis em debate: Pílula 02


No trecho de João Reis assinalado acima, quem afirma que os negros da costa leste africana que chegavam à Bahia no início do século 19 eram especialmente perigosos, um “alto risco para a paz escravista”, o Conde da Ponte, é uma fonte colonial, oficial e sob a qual, obviamente historiadores perspicazes como João devem lidar com muito cuidado, porque são fontes suspeitas que ora reforçam interesses coloniais superiores, ora omitem ou falseiam dados por diversas intenções individuais, subjetivas demais para serem levadas ao pé da letra, mas vá lá que seja.

Fica a impressão por isto mesmo que a fonte talvez tenha sido usada aqui como referencia porque serve para corroborar a tese central do autor: A de que os yoruba (ou os negros oriundos do Golfo do Benin) eram valorosíssimos guerreiros, ‘superiores’ neste aspecto aos demais. A afirmação, para mim um tanto apriorística é reforçada apenas pela tese do nigeriano E. Adeny Oroge “The Institution of slavery in Yorubaland” que não é de modo algum, pelo que presumo um estudo amplo sobre a impetuosidade guerreira dos africanos em geral (a tese de E. A. Oroge, pelo que me lembro, é usada também por Luiz Nicolau Parès em estudos ligados ao estudo do fenômeno da ‘nagoização‘ e da invenção do Candomblé em Salvador, BA do século 19).

De todo modo, nada há de questionável na afirmação (ou opinião) em si, mas ora, convenhamos que sob as mesmas circunstancias sociais e históricas estavam sujeitos os africanos aqui chegados oriundos de outras regiões, gente da área bantu inclusive (bastaria dar uma olhada, por exemplo nas conflituosas relações entre o Reino do Kongo, seus vizinhos e o invasor português neste mesmo período e nas guerras interétnicas no Sul da África e inúmeros outros exemplos no continente inteiro).

Esta hipótese…’etnogeneticista‘ da ‘impetuosidade guerreira superior’ original, portanto, caso fosse factível, não parece razoável que tivesse sido – como João parece enfaticamente afirmar – um atributo exclusivo dos yoruba e dos haussás. Não existem nesta parte do texto a princípio – João não os demonstra suficientemente – elementos que corroborem esta afirmação. As alegações, portanto podendo ser generalizadas para, praticamente todas as demais nações africanas que nos cederam escravos, é muito tendenciosa, capciosa mesmo a meu ver.


(Guerreiros Bantu. Filme Zulu Dawn 1979)
Em outras partes – as quais comentarei mais adiante – o texto de João Reis está cheio de tentativas de ser comparativo a este respeito, relacionando hierarquicamente atributos superiores dos yoruba-haussás em relação à uma suposta (e atávica) inferioridade ‘crioula‘ e/ou bantu (‘angolana‘ no caso), mas o fato de ‘sugerir‘ isto sem criar nenhum termo de comparação ou parâmetro válido que justifique esta sua… superestimação, esta adulação aos yoruba-haussás, o excessivo, o exagerado destaque dado ao ‘espírito guerreiro’ destes ‘oriundos do Golfo do Benin’ neste caso é que contamina a tese de João Reis com intenções ideológicas estranhas e questionáveis. É delas que estamos tentando tratar aqui.

João Reis em debate: Pílula 03


A percentagem de escravos ‘crioulos’ libertos, por exemplo é um dado inócuo para a argumentação. Afinal, tratava-se de uma revolta islamica, uma ‘jihad‘ da iniciativa de negros yoruba-haussás (entre os quais inclusive muitos libertos – 48%). O dado solto assim no meio do enunciado carece de propósito. Afinal porque razão negros libertos não muçulmanos (ou não nagôs) deveriam se envolver numa revolta tão especificamente ligada a um grupo étnico religioso?

(O dado visto por outro ângulo serve inclusive para reforçar o caráter religioso da revolta – que João subestima – reduzindo a sua condição de ‘revolta escrava’ ao meu ver exagerado pela historiografia ‘oficial’ do Brasil)

A propósito vale ressaltar que existem relatos idôneos que dão conta de que este tipo de adesão de ‘crioulos‘ na Revolta dos Malês seria indesejado – e até rechaçado – pelo revoltosos mais radicais que consideravam estes ‘crioulos‘ (e todos os outros que não fossem malês) ‘infiéis‘, inimigos do islã Por isto ou por aquilo, com certeza a “ausência do negro brasileiro ou ‘crioulo’ ” na Revolta dos Malês precisa ser explicada de maneira menos grosseira e simplista, pois, as razões podem ser as mais diversas. Este fator, colocado assim eugenisticamente como João Reis coloca, não explica nada.

Esta associação direta entre ‘negro africano puro e superior’ e ‘negro brasileiro impuro e inferior’ que aparece muito explicitamente no texto do renomado historiador é o lado mais lamentável de seu discurso.

Infelizmente só se encontra algum meio de compreender as razões obscuras desta argumentação de João Reis – a tal ‘passividade crioula’ – quanto se desconfia da existência nela de uma mal disfarçada intenção de depreciar o caráter, a moral guerreira dos ‘crioulos, cabras e mulatos’ para, em contrapartida reforçar a tese da superioridade moral dos ‘aguerridos’ africanos, e indiretamente, por vias transversas, afirmar a surrada teoria da ‘supremacia nagô-haussá.

Quem tiver outra versão que me convença. Tudo fica mais claro quando se ilumina o que está obscuro com outras luzes menos distraídas.

Aliás – disse isto em meu livro – estas classificações grosseiramente eugenistas usadas por João Reis (como não se aperceber disto?), transcendem um racismo antiquado e nada sutil que perpassa todo o texto. Como se sabe estas categorias (‘cabra’, ‘crioulo’, ‘mulato’) não possuem mais nenhum valor etnológico. Este tipo de categorização – estou certo de que o historiador sabe disto melhor do que eu – era muito utilizada pelo regime escravista (‘boçais’, ‘ladinos’, ‘crioulos’, ‘cabras’…) com as finalidades as mais abjetas, servindo inclusive, até recentemente como modelo oficial para a classificação de indivíduos em regimes racistas como o ‘apartheid‘ da África do Sul, e a ‘lei do indigenato’ do colonialismo português, por exemplo.

Não é mais cientificamente aceitável se relacionar assim, diretamente ‘impetuosidade guerreira’ – ou qualquer outro atributo individual ou grupal – com o fato de uma pessoa ser ou não ser miscigenada (“pura” ou “impura”?) ou ter ou não ter nascido na África ou no Brasil. Isto é racismo grosseiro. Há hoje absoluto consenso quanto a isto.

Qualquer etnólogo de esquina sabe que a geografia e a genética não são fatores, exatamente determinantes da cultura ou dos modos de ser de um grupo social. Um negro – escravo ou liberto – nascido no Brasil filho de dois africanos (ou não) e vivendo isolado num ambiente cultural com pessoas de origem semelhante a sua, será etnicamente igual a um outro nascido na África.

Estes parâmetros eugenistas, enfim não são válidos para se analisar a participação de africanos e crioulos em qualquer evento histórico, muito menos numa Revolta que, afinal era… ‘dos Malês’.

(Para quem ainda não se ligou a dica: ‘Malê” (“Imale“) é a palavra do vernáculo yoruba para “muçulmano“)

Minha amiga negra para mim, infelizmente estava certa em suas suspeitas. Minha amiga branca talvez tenha lido o livro com outros olhos…ou outros óculos, como saber? O certo é que a contradição “negro africano heroico, rebelde” versus ‘negro brasileiro covarde, passivo‘ fulcro deste trecho da tese de João José- inegável, porque está explícito – mesmo no estrito contexto da Revolta dos Malês é um conceito absurdo e inaceitável como ciência. Não vejo isto como historiografia isenta ou séria. É o que eu acho.

Conta outra.

(Daqui a pouco a gente volta)
Spírito Santo

http://spiritosanto.wordpress.com/2012/03/03/revolta-dos-males-e-joao-reis-a-historiografia-que-nao-sai-do-corpo-que-nao-lhe-pertence/

domingo, 26 de fevereiro de 2012

Metafísica Bantu


Em diversas outras ocasiões temos feito referência ao conceito lohmanniano de sistema língua/pensamento, aplicado ao caso das línguas semitas e às indo-européias. Neste estudo, consideraremos as classes gramaticais/metafísicas, um fato peculiar às dezenas de línguas bantu, línguas da África subsaariana (dando particular destaque ao kimbundo[1], a língua africana que mais influenciou o português do Brasil).

Se toda língua traz consigo uma visão de mundo, no caso das línguas bantu, com suas classes, este fato é ainda mais acentuado. E a filosofia bantu (uma filosofia não escrita, "uma filosofia sem filósofos", no dizer de Tempels), a língua e os provérbios aparecem como elementos especialmente privilegiados: a língua, como a própria base sobre a qual se edifica o pensamento; os provérbios, como sua primeira elaboração.

Assim, após apresentar alguns aspectos da língua/pensamento bantu - relativos, sobretudo, à nona classe e aos conceitos de Deus (Nzambi) e de Criação -, iremos estabelecendo (a partir de sugestivos provérbios africanos) um confronto com os mesmos temas na tradição filosófico-teológica clássica ocidental[2], aqui representada por Tomás de Aquino. Precisamente a acentuada diversidade dessas perspectivas torna ainda mais interessantes as coincidências.

As classes bantu

Há um traço marcante nas línguas bantu, que imediatamente desperta a atenção do filósofo: a divisão dos substantivos em classes nominais, geralmente dez, que, ao contrário das declinações latinas (por exemplo), não se limitam a agrupar gramaticalmente as palavras. Transcendendo a gramática, as classes estabelecem uma autêntica divisão metafísica: a primeira sílaba de cada palavra é um classificador: indica em que setor da realidade[3] (ser humano, animal, rio, categoria abstrata, instrumento, etc.) situa-se[4] o ente designado[5].

Exemplificaremos, a seguir, com o kimbundo. No kimbundo - como em geral nas línguas bantu - encontramos dez classes nominais[6]. Os classificadores de singular e plural são:

Classe ( 1a, 2a, etc) - Classificador (sílaba inicial)





singular - plural

1a. mu - a

2a. mu - mi

3a. ki- i

4a. ri- ma

5a. u- mau

8a. ku- maku

9a. variado- ji

10a. ka- tu


Alguns exemplos sobre esse sistema de classes.

A primeira classe - cujo classificador é mu/a - é a dos entes racionais, as pessoas. A palavra-chave desta classe é mutu ou muntu, pessoa (daí o plural: bantu), da qual, evidentemente, derivou o classificador mu. Assim, as palavras desta classe são, na verdade, contrações: mukongo, caçador = mu (tu), pessoa + (ku) kongo, caçar. Desta classe, passaram para nossa língua, palavras como mukama e muleke[7].

Já a oitava classe, ku/maku, é a dos termos verbais: ku é semelhante ao to do infinitivo verbal do inglês[8]. Penetraram no português do Brasil: Kuxila, dormitar (Mendonça); Kufundu, penetrar, enterrar (Mendonça). Já em Cannecattim (196, 207), encontramos nfundu, escondido, secreto. Daí kafundó e kafuné (ação carinhosa dos dedos no cabelo). Xinga, insultar (Quintão, 35); sunga, puxar (Quintão, 35). Samba é rezar (Cannecattim, 206). Quando Vinicius de Moraes diz que "o bom samba é uma forma de oração", está afirmando algo estritamente rigoroso do ponto de vista etimológico.

De especial interesse para as comparações que faremos com o pensamento clássico ocidental é a nona classe: seu classificador plural é ji e apresenta singular variado, mas freqüentemente iniciado por n (ng, nd, nz) ou m (mb) . A consoante que se segue ao n da classe "é eufônica, a fim de evitar que o n entre em contato direto com a vogal do radical" (Kagame, 136). É de decisiva importância a observação de Ntite Mukendi (Mukendi, 103): o classificador n é um indicador de ser. N, no caso, indicaria "o que...", "aquele que..." por excelência, ostensiva ou tipicamente, exerce tal ação. Assim, da ação de nadar (zoua), procede a palavra para pato (nzoue, aquele que, por excelência, nada); de longa (carregar), ndongo (canoa, a que carrega); de lula (ser amargo), ndululu (fel, o que, tipicamente, é amargo); de enda (andar), ngenji (viajante) etc. (Quintão, 109,110).

Dessa classe é-nos familiar Ngambi, o linguarudo (de amba, falar). É interessante observar que o sufixo verbal -ela (Quintão, 83; Valente, 207) indica finalidade, motivação; daí deriva ngambela, engambelar, falatório para obter algo; falar e falar a fim de...

Deus, criação e falar no pensamento de Tomás de Aquino[9]

As teses de Tomás sobre o falar e a Criação permitir-nos-ão estabelecer interessantes relações com as concepções de Deus e da Criação na filosofia bantu.

Locutio est proprium opus rationis (I, 91, 3 ad 3); "falar -diz Tomás- é operação própria da inteligência". Ora, entre a realidade designada pela linguagem e o som da palavra proferida, há um terceiro elemento, essencial na linguagem, que é o conceptus, o conceito, a palavra interior (verbum interius, verbum mentis, verbum cordis), que se forma no espírito de quem fala e que se exterioriza pela linguagem, que constitui seu signo audível (o conceito, por sua vez, tem sua origem na realidade).

Mas, se a palavra sonora é um signo convencional (a água pode chamar-se água, water, eau etc.), o conceito, pelo contrário, é um signo necessário da coisa designada: nossos conceitos se formam por adequação com a realidade. E a realidade, cada coisa real, tem um conteúdo, um significado, "um quê", uma verdade que, por um lado, faz com que a coisa seja aquilo que é e, por outro, torna-a cognoscível para a inteligência humana. É precisamente isto o que Tomás designa por ratio. Assim, indagar "O que é isto?" ("O que é uma árvore?", "O que é o homem?") significa, afinal das contas, perguntar pelo ser, pelo "quê" (quid-ditas, whatness, qüididade), pela ratio, pela estruturação interna de um ente que faz com que ele seja aquilo que é. Daí a sugestiva forma interrogativa do francês: Qu'est-ce que..., "que é este quê?", "que quê é isto?".

Esta ratio que estrutura, que plasma um ente é a mesma que se oferece à inteligência humana para formar o conceito, que será tanto mais adequado, quanto maior for a objetividade com que se abrir à realidade contida no objeto.

Dentre as muitas e variadas formas de interpretação da expressão "Deus fala"[10], há uma especialmente importante nas relações entre Deus e o homem: não é por acaso que João emprega o vocábulo grego Logos (Verbum, razão, palavra) para designar a segunda Pessoa da Ssma. Trindade que "se fez carne" em Jesus Cristo: o Verbum não só é imagem do Pai, mas também princípio da Criação (cfr. Jo 1,3). E a Criação deve ser entendida precisamente como projeto, design feito por Deus através do Verbo. Numa comparação imprecisa[11] com o ato criador divino, considero o isqueiro que tenho diante de mim. Este objeto é produto de uma inteligência, há uma racionalidade[12] que o estrutura por dentro. É precisamente essa ratio que, se por um lado, estrutura por dentro qualquer ente, por outro, permite, como dizíamos, acesso intelectual humano a esse ente[13]. No caso do isqueiro, a ratio que o constitui, enquanto isqueiro, é o que me permite conhecê-lo e, uma vez conhecido, consertá-lo, trocar uma peça etc.

Guardadas as devidas distâncias[14], é nesse sentido que o cristianismo fala da "Criação pelo Verbo"; e é por isso também que a Teologia - na feliz formulação do teólogo alemão Romano Guardini - afirma o "caráter verbal" (Wort-charakter) de cada ser. Ou, em sentença de Tomás: "Assim como a palavra audível manifesta a palavra interior[15], assim também a criatura manifesta a concepção divina (...); as criaturas são como palavras que manifestam o Verbo de Deus" (I d. 27, 2.2 ad 3).

Assim, para Tomás, não só Deus é, por excelência, Aquele que fala, mas as próprias criaturas são "palavras" proferidas por Deus.

Essa concepção de Criação como fala de Deus, a Criação como ato inteligente de Deus, foi muito bem expressa numa aguda sentença de Sartre, que intenta negá-la: "Não há natureza humana, porque não há Deus para concebê-la". De um modo positivo, poder-se-ia enunciar o mesmo desta forma: só se pode falar em essência, em natureza, em "verdade das coisas", na medida em que há um projeto divino incorporado a elas, ou melhor, constituindo-as.

A "natureza", especialmente no caso da natureza humana, não é entendida pela Teologia como algo rígido, como uma camisa de força metafísica, mas como um projeto vivo, um impulso ontológico inicial[16], um "lançamento no ser", cujas diretrizes fundamentais são dadas precisamente pelo ato criador, que, no entanto, requer a complementação pelo agir livre e responsável do homem.

Nesse sentido, Tomás fala da moral como ultimum potentiae, como um processo de auto-realização do homem; corresponde-lhe continuar, levar a cabo aquilo que principiou com o ato criador de Deus. Assim, todo o agir humano (o trabalho, a educação, o amor etc.) constitui uma colaboração do homem com o agir divino, precisamente porque Deus quis contar com essa cooperação.

Essas considerações servirão para analisar algumas convicções da visão de mundo, expressa por provérbios bantu que, surpreendentemente, coincidem de modo profundo com o conceito cristão de criação.

Tomás de Aquino e a metafísica dos provérbios bantu

Nas línguas bantu, encontraremos diversas designações de Deus (cfr. Kagame, 135 e ss.), como: Kalunga: aquele-que-por-excelência-junta[17]; Leza: o todo-poderoso; Molimo: o Espírito; Ruhanga: O Criador; etc. Mas é Nzambi (ou zambi), da nona classe, a forma mais freqüente e também a mais sugestiva de nomear a Deus. Nzambi é um derivado do verbo amba[18], que significa falar. E chamar a Deus de Nzambi[19], é chamá-lo literalmente de "aquele que, por excelência, fala"[20].

Há cerca de duzentos anos, numa das primeiras gramáticas de kimbundo, Cannecattim indica que, em "língua congueza", Deus, o Criador, não só se diz Nzambi (aquele a quem compete falar) mas Nzambi-Mpungu (p. 176), forma encontrada ainda hoje em certas regiões (Kagame, 132, 145 etc.). Segundo Marie-Bernard (cit. Kagame, 145), mpungu significa "aquele que voa muito alto". Tal significado é derivado por analogia: mpungu é originalmente uma espécie de águia que voa tão alto, a ponto de tornar-se invisível a olho nu. Daí também os significados derivados de mpungu como adjetivo: o maior, o mais elevado, o supremo, o excelente (Kagame, 145). "Mpungu - segundo Laman (cit. Kagame, 145) - acompanha Nzambi ou outras palavras para expressar as qualidades mais altas". Donde Nzambi-Mpungu: aquele que eminentemente, por excelência, fala.

Essa forma de designar a Deus, como Aquele-que-Profere, aproxima a concepção bantu do Logos (Verbum) de Jo 1,1 e da idéia de criação de Tomás de Aquino. Uma confirmação desse sentido da Criação como "falar criador de Deus" é encontrada em dois interessantíssimos provérbios kiuoio (Vaz, 178).

A kilamba não tem raízes. Mas não foi Deus quem a fez?

Chi lambu ka kambua li sina. - Bati Nzambi ku chi vanga kó?

O provérbio - muito tradicional entre os Cabindas - refere-se à surpreendente planta kilamba, que (ao menos, aparentemente) não tem raízes. Ora, isto (que diabos: uma planta sem raiz!?!) contraria a natureza das coisas, não condiz com a Criação, que é sempre ratio. Daí a dúvida (retórica) expressa na pergunta final.

Em outra versão, o mesmo provérbio é assim apresentado (JM, 61 e 429):

A kilamba, a que não tem raiz, não foi Deus quem a fez.

Kilamba kikambua lisina: Nzambi ka sa kivanga ko.

Em Ciscato (p. 307), encontramos:

A serpente, por dom de Muluku[21], pode correr, mesmo não tendo patas.

Enowa evahiwé ti Muluku wi enátchimaka ehirí ni Mechó.

Um outro provérbio, ainda mais significativo, fala da criatura como "palavra proferida por Deus"[22]:

Palavra proferida por Deus, compete ao homem completá-la.

Kambua kikamba Nzambi; muntu limonho uisesula (JM, 431).

Do conceito de criação como pensamento de Deus, decorre o conceito de mistério para a tradição filosófico-teológica do Ocidente (e para as tribos africanas). Mistério não significa apenas não-conhecimento (fático), mas um determinado tipo de não-conhecimento: aquele que decorre do excesso (e não da falta) de luz.

Se o mundo foi criado por Deus, isto é, projetado, concebido, falado, pensado pelo Verbo-Nzambi, então cada ente é mistério, e a realidade criada transcende a capacidade de compreensão de uma criatura como o homem. Precisamente esta é a razão pela qual Tomás de Aquino afirmou que nenhum filósofo jamais esgotaria sequer a essência de uma mosca. A essa transcendência, referem-se alguns provérbios:

Coração de Deus: guarda todas as coisas.

Ntima Nzambi: lunda mamonso (JM, 432).

Esta sentença aplica-se como convite à paciência ("Deus é quem sabe"). Note-se o conceito de ntima (ou mutima ou murima), coração, o íntimo de cada um. Trata-se de um conceito importante na visão de mundo bantu. Embora haja variações regionais, recolhamos aqui o conceito que Laman[23] apresenta em seu dicionário kikongo: "ntima: coração, sentimento, consciência, o interior".

Ao se afirmar que o ntima Nzambi (coração de Deus) guarda todas as coisas, afirma-se também o ato criador: só Deus conhece o ntima de cada criatura:

O que está no coração de outro, ninguém o sabe.

Make mu ntima ngana: ka mazábi ko (JM, 410)

O coração humano não se contenta com pouco... nem com muito.

Murima ohinamwéla ni ekhani, ni etókwenetho (EC, 261).

Se o coração fosse um cadeado, certamente eu o abriria.

Monti ntima nkandau: Nkanu mazibula (JM, 411)

Ah! se o coração fosse nariz...

(Que bom seria se pudéssemos, pelo "faro", saber como são as pessoas).

Murima wári ephulá... (EC, 135).

Comemos juntos e rimos juntos... O que está no coração, porém, não o sabemos (Vaz, 203).

Liá, tu seva... Ma ké mu ntima ku podi ku ma zaba kó.

Os corações diferem: há gente boa e gente má ([24]).

Ntima viakene: ike muntu mbote ike muntu mbi (JM, 411).

E, assim, cada um é como é, como Deus o fez (o que, do ponto de vista da ética da convivência, é um chamado à compreensão).

Quando, cerrando os dentes, bates no cão: sabes o que está no coração dele?

Abu uibula mbuá ui kanga meno; ngeie zabizi ma ke mu ntima mbuá? (JM, 208)

O papagaio não pode pôr ovos em outra parte: foi Deus quem o fez assim... (JM, 360)

Nkusu kibuta longo bangana ko: naveka Nzambi uvanga buau

Fenômeno admirável o do ovo: carne por dentro; osso, por fora!

Bunkúlu bukió! Nsunha, mukati; mvese, kunganda (JM, 137).

Aplicam-se estes dois últimos provérbios ao que está fora da regra geral. Pois, o que a inteligência de Deus cria, nem sempre a mente humana alcança (e, em qualquer caso, nunca esgota):

Embrulho que Deus amarrou, só Deus pode desamarrar.

Kifunda kikanga Nzambi: Uala lukútula Nzambi to (JM, 57).

Nó que Deus amarra, o homem não pode desamarrar.

Likova likanga Nzambi; muntu limonho podi kútula ko (JM, 139).

Questões do coração, a cabeça do homem não comporta.

Mambu manata ntima: Ntu muntu limonho kapódi ku manata ko (JM, 412).

Mas, no geral, a Criação, enquanto fala de Deus, é "audível" pelo homem, pois as leis da Criação são fala de Deus.

Voz da terra: voz de Deus (Vaz, 17).

Mbembu nsi: mbembu Nzambi


[1]. Falado em certas regiões de Angola. Referir-nos-emos também a duas outras línguas angolanas: o umbundu e o kiuoio. A coletânea de provérbios de Elia Ciscato refere-se ao povo lomwe, de Moçambique.
[2]. Esse confronto com o pensamento europeu é tema tratado por autores como Kagame, Tempels e Jahn. Todos os autores e lexicógrafos citados neste estudo, encontram-se na Bibliografia apresentada ao final. Citaremos pelo sobrenome, seguido da página (quando não indicarmos a página, trata-se de referência a dicionários ou listas em ordem alfabética). O livro de Joaquim Martins será abreviado por JM.
[3]. Este fato é independente das diversas interpretações sobre o verdadeiro modo bantu de compreender a realidade. Como se sabe, há diversas teorias a esse respeito. A realidade, para os bantus, na interpretação pioneira de Tempels (cap. II), está centrada não no ser, mas na força, na força vital: "Para o bantu, a força não é um acidente; é muito mais até do que um acidente necessário, é a própria essência do ser em si". Já Kagame (pp. 210 e ss.) faz sérias críticas à teoria da "força vital".
4. Advirta-se, desde logo, que o observador europeu ou americano encontrará nessas classes muitas "exceções", intromissões e permeabilidades inter-classes, imprevistas para quem supõe que uma lógica fria devesse prevalecer sobre o dinamismo da língua e, principalmente, para quem ignora o fenômeno da formação de palavras por extensão de sentido, ou ainda o particular ângulo de observação do homem africano.
[5]. Para além desta primeira divisão em dez classes, há o que Kagame designa por "quatro noções unificadoras últimas" que, por sua vez, remetem a uma única raiz transcendental: -ntu, ser (Kagame, 121 e ss.). Em Jahn (136-142) pode-se encontrar um resumo das interpretações da filosofia subjacente à linguagem bantu (suas classes e categorias). Jahn segue as teses de Kagame procurando compatibilizá-las com Tempels. As quatro "noções unificadoras últimas" - misto de ser, força e substância - são assim apresentadas por Jahn: "Muntu = homem, Kintu = coisa, Hantu = lugar e tempo, Kuntu = modalidade. São as quatro categorias da filosofia africana. Tudo o que é, todo ente, qualquer que seja a forma sob a qual se apresente, pode se incluir numa destas quatro categorias. Fora delas, nào há nada de imaginável. Ntu é a força universal em si, mas que jamais aparece separada de suas formas fenomênicas: Muntu, Kintu, Hantu e Kuntu" (Jahn, 136-137).
[6]. Palavras da 6a. e da 7a. classes são muito raras. Já a nona classe interessar-nos-á particularmente. Apresentamos um estudo um pouco mais detalhado, do ponto de vista da língua, em "Linguagem-Filosofia Bantu e Tomás de Aquino", Cadernos de História e Filosofia da Educação, EDF- FEUSP vol I, No.1. 1993, pp. 15-28.
[7]. Em kimbundo, kuamua (Quintão 34, 77), ou em umbundu, kamwa (Valente, 396) é a forma passiva de mamar, chupar. Muleke - menino (Cannecattim, 193).
[8]. Ku (ao contrário de ki, 3a. classe, que aponta para ação intermitente) indica ação contínua. Nesses termos verbais, o classificador ku não é conjugado. Da 8a. classe procedem diversas palavras. Nos exemplos que seguem, omitiremos, por vezes, o ku.
[9]. Boa parte dos conceitos apresentados neste tópico recolhem idéias do excelente capítulo de Josef Pieper "Was heisst Gott Spricht?" in Über die Schwierigkeit heute zu Glauben, München, Kösel, 1974, que deve ser consultado para uma exposição mais ampla do assunto.
[10]. Deus fala, gerando eternamente o Verbo; fala também na inspiração ou na iluminação mística do homem, hagiógrafo ou profeta; fala ainda, pela luz da fé que nos faz reconhecer na Sagrada Escritura e na Tradição, a palavra do Senhor, verbum Domini. Fala de Deus, em um outro sentido, é a Encarnação do Verbo, com que a Palavra de Deus aos homens encontra sua máxima realização (cfr. Hbr I, 1).
[11]. Imprecisa, pois num caso trata-se de realidade natural projetada pela Inteligência divina, e no outro, de um objeto artificial projetado pelo homem.
[12]. Inteligentemente o designer articulou a pedra, a mola, o gás etc.
[13]. Não por acaso, Tomás considera que inteligência é intus-legere ("ler dentro"): a ratio do conceito na mente é a ratio "lida" no íntimo da realidade.
[14]. Infinitas, no caso do ato criador de Deus.
[15]. O conceito, a idéia.
[16]. Ou melhor, "principial".
[17]. À primeira vista, surpreende que Kalunga, Deus, seja da 10a. clas-se (a dos diminutivos, ka). Na verdade, o africano, muitas vezes, vale-se do diminutivo para aumentar.
[18]. Forma muito comum às línguas bantu. Como já vimos em tópico anterior, ngambi é o linguarudo; e samba é orar: oração, também em latim, procede de os, oris: boca.
[19]. O N, como dizíamos, é o prefixo da 9a. classe que significa: aquele que, por excelência,...
[20]. A transformação do a final de amba no i de Nzambi é absolutamente exigida pela fonética
[21]. Muluku (cfr. EC, p. 86) é transcendente (e, ao mesmo tempo, imanente) livre e soberano, eixo profundo da moral e da religião, presidindo a vida, a consciência e a natureza.
[22]. Note-se, no original, que o radical amb se repete por três vezes.
[23]. Cit. por Kagame, p. 245
[24]. Dentre as expressões idiomáticas dos lomwe, destacamos: Orú-wana etchekú (EC, 1625), girar o coração ("mudar de atitude"). É interessante observar que também na tradição bíblica e oriental, o coração é um girador. Em árabe, esta concepção verifica-se até etimologicamente: qalb, coração procede do verbo qalaba: virar, girar, oscilar. Daí que o ser humano, girando em seu centro volitivo e existencial, seja inconstante: ora volta-se para uma coisa; ora, para outra... Também a nossa canção popular registra o verso: "Ai, gira, girou, meu coração navegador...".

Tomás de Aquino e a Metafísica
das Línguas Bantu e Tupi


Luiz Jean Lauand
jeanlaua@usp.br
Fac. Educ. Univ. São Paulo


Foto: Mulheres Xhosa, África do Sul.

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

ORIGEM E HISTÓRICO DOS CANDOMBLÉS DE CONGO-ANGOLA




Foto:Primeiros filhos Nzo Bate Folha (1916)

A história do candomblé[1] de congo-angola no Brasil está amparada quase que só na oralidade do Povo-de-santo angoleiro e seus registros escritos bibliográficos expressivos são muito escassos. Os poucos registros existentes são de Edison Carneiro, dignos de crédito, é verdade, mas em alguns momentos extremamente confusos e pouco esclarecedores.

Em Religiões Negras – Negros Bantos, editado pela primeira vez em 1937 ele usa a terminologia reducionista “candomblé de caboclo” para referir-se aos candomblés bantu. Explica o autor que, os candomblés de caboclo eram uma mistura de práticas nagôs, ameríndias e de catolicismo. Ainda segundo ele, os bantu não tinham mitologia nem deuses suficientes para seu culto e por isso apoderaram-se dos orixás nagôs, das figuras de índios e da mitologia indígena, isso tudo sincretizado com o catolicismo popular.

Pouco mais adiante, no entanto, ele diz que o único candomblé bantu, de nação Congo existente era o Terreiro de Santa Bárbara, de Manuel Bernardino da Paixão. O que podemos inferir dessa aparente confusão é que o autor, naquele momento, ainda não dispunha de conceitos muito claros a respeito dos candomblés que não se pautavam pelo modelo nagô. Páginas adiante ele reproduz interessante relato do Babalawô Martiniano do Bonfim, que, segundo Martiniano, o primeiro candomblé de caboclo, leia-se bantu, foi o de Naninha, uma senhora mulata, que dirigia seu candomblé no Moinho da antiga roça do Gantois que desapareceu com sua morte. O segundo candomblé de Caboclo, segundo Martiniano foi o de Silvana, que tocava sua roça num local chamado Periperí o que leva Edison Carneiro a concluir com a seguinte afirmação: “Daí, desses dois “terreiros” de caboclo, nasceram todos os candomblés que estamos estudando” (CARNEIRO: 1991, p.135).

E notem que o autor estava estudando os candomblés de origem bantu de então, e, continua informando que, ainda segundo Martiniano, os negros angolas costumavam usar tambores grandes, maiores que os dos nagôs e que os tocavam deitados entre suas pernas. Acrescenta ainda, que o velho Babalawô Martiniano recordava-se da seriedade com que o Pai-de-santo Gregório Maqüende dirigia as festas de seu candomblé de nação Congo. Por essas afirmações podemos concluir dessas páginas de Edison Carneiro, que os candomblés de feição bantu, existem na Bahia desde os finais do século XIX, e que, desde seus primórdios cultuavam os caboclos, por isso eram chamados de candomblés de caboclo.

É possível que a natureza do candomblé bantu, dada sua mítica, já nasceu cultuando caboclo. É também necessário atentarmos para o fato de que Martiniano do Bonfim foi auxiliar de Nina Rodrigues e que este trabalhou como informante em suas pesquisas nas duas últimas décadas do século XIX e que Martiniano era figura conhecida e circulada nos meios africanos em Salvador.

Se o Babalawô se recorda de dois candomblés de caboclo (sic) famosos no final do século XIX é sinal que os Bantu já tinham culto organizado desde então, mas que não foram notados por Nina Rodrigues nem por Manuel Querino[2]. Verdade é que, o único nome conhecido que ele cita é o de Gregório Maqüende, citado no pretérito, portanto, dado já como desaparecido e comparado a Bernardino da Paixão, por sua seriedade na condução de sua casa. Não podemos nos esquecer que Bernardino foi contemporâneo de Edison Carneiro e com ele estabeleceu relações de quase amizade.

Em obra posterior, (CARNEIRO: 1982) veremos aparecer os nomes de Ciriáco e Maria Neném não como fundadores e sim como Zeladores de renome, ao lado de Mariquinha Lembá juntamente com o terreiro do Calabetã. Em alguns momentos, Carneiro reconhece a existência de candomblés bantu, em outros engloba todos os candomblés não nagôs no rol dos candomblés de caboclo.

Igualmente, não temos encontrado outras referências à fundação ou início dos candomblés bantu na Bahia, a não ser relativo ao funcionamento e fechamento dos famosos Calundus pelo Brasil a fora durante o período colonial, o que não nos autoriza a concluir que os candomblés bantu como os conhecemos tenha sido uma continuação dos Calundus. Ainda nessa linha de raciocínio, encontramos Ruth Landes, que esteve na Bahia no ano de 1936 e em seu livro Cidade das Mulheres, narra a entrevista que fez com Mãe Sabina, famosa, na época, e que era mãe de um candomblé de caboclo, e por isso vivamente censurada pelo povo-de-santo em razão de suas práticas e posturas inovadoras e tampouco era reconhecida pelas Sacerdotisas nagôs.

Sabina era continuadora de outra Mãe de Santo, por nome Theodora, essa sim respeitada até por Mãe Menininha, que era um ícone do candomblé de então. Por aí podemos deduzir que os candomblés de caboclo, ou seja, que não eram bantu, mas que cultuavam os orixás caboclizados eram diferentes dos candomblés bantu, diferença essa não percebida claramente por Edison Carneiro. E que, os candomblés legitimamente de caboclos que tinham a frente Sabina e Theodora estavam em sua fase inicial der formação naquele momento, década de 30 do século XX, posteriores, portanto, aos candomblés de Naninha e Silvana apontados por Martiniano.

Ainda no já citado Religiões Negras – Negros Bantos, de Carneiro, (1991) o autor nos relata um encontro que teve com o Pai-de-Santo Jubiabá, pai de iniciação de Joãozinho da Goméia, e diz lá claramente que Jubiabá era um Sacerdote de Candomblé de Caboclo o que nos leva a pensar que talvez Jubiabá fosse um sacerdote de Candomblé bantu como sempre afirmou Tata Londirá.

Nesse mesmo livro, Carneiro registra algumas cantigas coletadas em candomblés de Caboclo, sendo algumas em português, inclusive conhecidas nossas por as termos ouvido em casas de angola milongada. Outras em Kikongo/kimbundo entoadas até hoje nas casas tradicionais o que é um dado a mais na nossa tese de que Carneiro confundiu candomblé de caboclo com candomblé bantu. Se Silvana e Theodora causavam tanto mal estar nos meios candomblecistas é porque praticavam um culto novo que feria a ortodoxia dos candomblés nagôs, ou seja, não era algo já concretizado e cimentado, mas alguma coisa inovadora e causadora de espanto e mal estar. Por todas essas evidências, podemos concluir que o que Edison Carneiro chama de candomblé de caboclo era na verdade candomblé bantu.

E ele próprio afirma através da fala de Martiniano do Bonfim que eles, os candomblés de caboclo (sic) existiam desde o século XIX, permanecendo ainda muito vivo nas lembranças de Martiniano as figuras de Naninha e Silvana, antigas sacerdotisas de candomblé bantu. Martiniano, no mesmo texto, também pontua a maneira dos angolanos tocarem seus atabaques, que eram bem maiores que os atuais (deles) usados pelos nagôs e inclusive à maneira de executá-los.

Todos esses elementos nos conduzem a concluir que os candomblés bantu foram criados muito antes da Matriarca Maria Neném, que eles já existiam na Bahia concomitantemente aos candomblés de outras nações e que a importância de Maria Neném, chamada de “A Mãe do Angola” está no fato de que de suas mãos tiveram origem duas raízes importantes do candomblé Bantu, no Brasil, o Bate-Folha e o Tumba Junçara, criadas a partir das ações de Bernardino da Paixão e Manuel Ciriáco e que não sem razão ela, Maria Neném, é figura viva na memória do Povo-de-Santo angoleiro e, por isso, recebeu este merecido epíteto.

[1] Segundo Nei Lopes: (3) Comunidade terreiro onde se realizam essas festas. De origem banta mas de étimo controverso. Para A.G. Cunha é híbrido de Candombe mais o yorubá Ilê, casa. Nascentes dá apenas origem africana. Raymundo dá kA+ndombe, com apêntese de l. E Yeda P. de Castro aponta longa evolução, a partir do protobanto.

[2] Manuel Querino, pesquisador auto-didata que viveu na Bahia , nasceu em 28 de julho de 1851, na cidade de Santo Amaro da Purificação. Escreveu entre outros livros e artigos para revistas, o célebre A raça africana e os seus costumes na Bahia, publicado pela primeira vez em 1938.


(http://mbanzakongo.blogspot.com/2009/02/20-origem-e-historico-dos-candombles-de.html)

quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

Os Rosários dos Angolas: Escravos na Bahia setecentista vieram da África Central

"Livro Os Rosários dos Angolas – Irmandades de africanos e crioulos na Bahia Setecentista revela que, na Bahia, presença de escravos oriundos da “nação angola” é mais relevante do que se pensava."


Durante um período da história brasileira, a presença de homens e mulheres de origem centro-africana foi considerada minoria enquanto população escrava na Bahia.

No entanto, o livro Os Rosários dos Angolas – Irmandades de africanos e crioulos na Bahia Setecentista, da historiadora Lucilene Reginaldo, mostra que os únicos escravos que chegaram ininterruptamente ao estado entre os séculos 18 e 19 foram os de “nação angola” – termo utilizado na época para designar os indivíduos provenientes de uma vasta região da África central, escravizados e embarcados para a América a partir do porto de Luanda.

O livro, recentemente lançado pela Editora Alameda e fruto da pesquisa de doutorado realizado na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) pela autora – que atualmente é professora do Departamento de Ciências Humanas e Filosofia da Universidade Estadual de Feira de Santana –, contou com o apoio da FAPESP na modalidade Auxílio à Pesquisa – Publicações.

De acordo com a autora, o estudo teve como objetivo inicial a investigação das irmandades negras na Bahia no século 18. No prefácio do livro, a orientadora de Lucilene, Silvia Hunold Lara, professora do Departamento de História da Unicamp, afirma que as irmandades, “em uma sociedade escravista, eram um importante canal de expressão e preservação de valores e anseios religiosos, sociais e políticos”.

“A proposta foi estudar a irmandade como um espaço importante tanto de vivências como de reelaborações das entidades étnicas oriundas da África e das que foram construídas na diáspora”, disse Lucilene à Agência FAPESP.

“Ao longo da pesquisa, observei que o grupo de africanos conhecido como ‘angolas’ se destacava na Bahia. Eles aparecem de forma recorrente nos arquivos portugueses, criando e organizando irmandades ao longo do século 18, especialmente as dedicadas a Nossa Senhora do Rosário, que eram as mais populares da época”, completou.


No primeiro capítulo do livro, a autora trata da importância das devoções católicas e da participação em irmandades e confrarias na constituição da experiência escrava no império português. Lucilene faz uma breve exposição sobre a conversão do Reino do Congo e o movimento de expansão do catolicismo na África Central, além de explicar a importância e o significado das irmandades e devoções negras no Reino de Angola.

No capítulo seguinte, a autora introduz ao leitor o cenário das irmandades negras na Bahia setecentista, principalmente em Salvador. Já o terceiro capítulo é dedicado a demonstrar a forma e a razão pelas quais os angolas se fizeram visíveis na história das irmandades do Rosário.

No capítulo quatro, a professora procura situar o leitor sobre a presença dos angolas na população escrava e liberta na Bahia do século 18 até meados do século 19. No texto, a pesquisadora discute as representações criadas sobre os angolas, ao longo dos séculos, por viajantes, traficantes e proprietários de escravos.

“Intelectuais da escola baiana de antropologia estabeleceram, no século 19, que foram os africanos ocidentais o grupo majoritário de escravos a chegar à Bahia. Com isso, adotou-se certa hierarquia em relação ao continente africano, sendo os ocidentais os mais evoluídos e os da África-Central, entre os quais das etnias banto e angola, os primitivos, tanto do ponto de vista ideológico como religioso”, destacou a pesquisadora.

O histórico sobre a Irmandade do Rosário das Portas do Carmo é apresentado brevemente no quinto, e último, capítulo. Nele, a autora faz uma análise da irmandade – que dá título ao livro – com base no acervo composto de diversos livros de associados e que compreende um período de 107 anos (de 1719 a 1826).

“Sem dúvida, a maior parte dos escravos africanos que chegaram à América portuguesa veio da África Central. Do ponto de vista numérico, a importância desses povos ainda é pouco avaliada, assim como a contribuição e a influência dos angolas no campo religioso e no cultural”, conclui a professora.

Por Mônica Pileggi
===============================

Os Rosários dos Angolas – Irmandades de africanos e crioulos na Bahia Setecentista
Autora: Lucilene Reginaldo
Lançamento: 2011
Preço: R$ 55
Páginas: 399
Mais informações: www.alamedaeditorial.com.br

Sinopse:

Os Rosários dos Angolas Irmandades de africanos e crioulos na Bahia Setecentista Uma abordagem histórica ampla e arejada, que transcende fronteiras territoriais e pressupostos tacanhos, confere ao livro de Lucilene Reginaldo uma perspectiva inovadora ao iluminar com outras luzes um tema já trilhado pelos estudos da escravidão: a história das confrarias leigas de africanos e crioulos articulada à experiência da escravização e à do Império português.

Focalizando as irmandades setecentistas de Nossa Senhora do Rosário em cidades da África atlântica, da metrópole e da América portuguesa, historiciza os significados que tiveram para a vivência da escravidão e para a elaboração de identidades africanas fora e dentro do continente.

Demonstra que foram um dos locus preferenciais da recuperação de uma humanidade danificada pelas contingências da escravização, tanto por mobilizar sentimentos de pertença, quanto por veicular devoções de livre escolha.

Por outro lado, ao iniciar a análise por uma problemática ainda pouco familiar aos leitores brasileiros – a da expansão do catolicismo na África Central –, sublinha a importância de se levar em conta a história pregressa das sociedades de onde vieram partes significativas da população brasileira.

Na Bahia, segundo o belíssimo título que associa os angolas aos seus rosários, a historiadora contempla as devoções de africanos centrais e seus parceiros crioulos, rompendo com um prisma seletivo que teimou, por muito tempo, em privilegiar determinadas nações em detrimento a outras, hierarquizando-as entre as mais civilizadas e as mais próximas da incivilidade, as mais evoluidas nos assuntos religiosos e as menos habilitadas nessa dimensão.

Com isso, quebra uma lógica evolucionista perversa e resistente que, na perspectiva do segmento branco europeizado que se pretendia superior até mesmo na esfera religiosa, desqualificava de roldão todas as expressões próprias aos setores dominados. Ao contrário disso – e é esta, por fim, uma das lições do livro – trata-se de uma história de religiosidades e sociabilidades interpenetradas e que dialogam entre si por meio de códigos gerados nos termos do Antigo Regime tão bem entendidos por africanos e crioulos, livres e escravos, eles também agentes históricos do mundo atlântico.

terça-feira, 10 de janeiro de 2012

Zambiapunga...Folclórico Bantu da Bahia!




"Nzambi ampungu" como o grande espírito e "saami ampunga" como os grandes ancestrais. "Mpungu", "ampungu" ou "ampunga" são palavras bantos que se referem aos mortos, aos antepassados, o que evidencia a relação da origem do ZambiAPUNGA atual com a religiosidade Banto. (Yeda Pessoa)

Trata-se de um cortejo de homens mascarados, trajados com roupas coloridas e feitas com retalhos de panos e papeis de seda, que saem às ruas durante a madrugada do dia primeiro de novembro, véspera do dia de finados, dançando e acordando a população da cidade ao som de instrumentos de percussão, como tambores, cuícas e búzios gigantes e até mesmo enxadas.(http://www.visiteabahia.com.br)



É caracterizada pelo uso de búzios gigantes, enxadas e outras ferramentas agrícolas, que são tocados como instrumentos de percussão pelos componentes A zambiapunga caracteriza-se, também, como um divertimento das pessoas envolvidas, que saem, de madrugada, com o intuito de acordar a população com sons dos instrumentos.

Por quase quatro séculos a economia do Brasil colônia, e posteriormente imperial, foi sustentada pela exploração da mão-de-obra escrava africana. Estes africanos foram trazidos à força para o Novo Mundo e, por não serem culturalmente homogêneos, trouxeram sua diversidade lingüística, religiosa, social e política para o Brasil, o que contribuiu decisivamente para nossa riqueza cultural. O Zambiapunga de Nilo Peçanha é uma manifestação atual da cultura popular baiana cuja origem liga-se profundamente a aspectos culturais importados do continente negro.

Zambiapunga é um grupo de homens mascarados que saem às ruas de Nilo Peçanha tradicionalmente na madrugada do dia 10 de novembro, dia de Todos-os-Santos, véspera de Finados, vestindo roupas coloridas feitas com panos e papeis de seda e percutindo instrumentos peculiares como enxadas, búzios, cuícas rústicas e tambores.

É provável que o Zambiapunga do Baixo-Sul baiano era ou integrava um ritual religioso de uma parcela dos africanos escravizados. Para entendermos esse aspecto é necessário fazermos uma análise etimológica do termo "zambiapunga" e enumerarmos alguns aspectos da religiosidade dos povos cujo termo citado se liga: os Bantos.

Zambi ou Nzambi-a-Mpungu é o Deus supremo de povos bantos do Baixo Congo.
A relação entre a palavra "zambiapunga" e o Deus supremo de africanos é a primeira evidência da origem religiosa do folguedo atual.




Para compreendermos a segunda evidência da origem religiosa do Zambiapunga é necessário falarmos um pouco sobre os Bantos e sua religiosidade. Os bantos, povos cujas línguas possuem uma origem comum e, por isso, o termo "Banto" delimita um grupo lingüístico africano e não uma etnia, vivem em todo o território abaixo do equador, ocupando uma área de 9.000.000 Km2 e englobando190.000.000 de indivíduos.

Apesar das grandes especificidades culturais que pode haver entre 190.000.000 de indivíduos, os Bantos possuem outras características culturais semelhantes além do parentesco lingüístico. Segundo Nei Lopes, "(...) parece que em todas as religiões bantas os espíritos dos ancestrais são os intermediários entre a divindade suprema e o homem. Assim, são eles que levam as oferendas dos fiéis e intercedem em seu favor junto a Nzambi(...)".

Essa importância do espírito dos ancestrais na religiosidade Banto é o segundo fator que evidencia o caráter religioso inicial do Zambiapunga.


Primeiro, a data tradicional do Zambiapunga ir às ruas em Nilo Peçanha é a madrugada de 1o de novembro, dia de Todos-os-Santos e véspera do dia de Finados. Nestes dois dias a população local volta sua atenção para a lembrança de seus mortos que são homenageados com flores, velas e missas. Não existia momento mais propício do calendário católico para um cortejo que refletia uma religiosidade baseada na ancestralidade ir às ruas.


Outra evidência do caráter religioso inicial do grupo é o significado do termo "Mpungu" de Nzambi-a-Mpungu. Segundo vocabulário construído por Aires Machado Filho, a palavra "Mpungu" é provavelmente sinônima de "defunto". Yeda Pessoa traduz, por sua vez, "nzambi ampungu" como o grande espírito e "saami ampunga" como os grandes ancestrais. "Mpungu", "ampungu" ou "ampunga" são palavras bantos que se referem aos mortos, aos antepassados, o que evidencia a relação da origem do ZambiAPUNGA atual com a religiosidade Banto.


Com o tempo o caráter religioso se perdeu e permaneceu uma bela manifestação da cultura popular. O Zambiapunga ficou inativo em Nilo Peçanha cerca de 20 anos ( entre as décadas de 1960 e 1980) sendo revitalizado em 1982 pela professora Lili Camardelli e seus alunos do Ginásio de 1o Grau Adelaide Souza.

Após essa revitalização o Zambiapunga nilopeçanhense tornou-se uma das maiores manifestações folclóricas do Estado da Bahia. Sua importância é refletida na participação do grupo em eventos internacionais de peso ( como ECO 92 e PERCPAN); por ter sido capa de periódicos internacionais ( The New York Times) e por ter sido tema de diversos documentários e programas de TV ( "Brasil Legal", produzido pela Rede Globo e exibido em 01/07/1997; "Caretas e Zambiapunga", produzido pelo IRDEB; "Nilo Peçanha e o Zambiapunga", produzido pela TV Salvador e exibido em 05/2001; "Na Carona", produzido pela Rede Bahia e exibido em 2001, entre outros.).

* Texto de Alexandre Guimarães (graduando em História pela Universidade do Estado da Bahia/UNEB-CAMPUS V).

Onde assistir: Valença, Nilo Peçanha e Cairú

*segunda foto: Do blog Meu querido Galeão.

quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Os mitos Africanos no Brasil: Um livro velho nunca morre porque a mentira tem perna curta

" No reconcavo Bahiano registam-se , dentro outros, os seguintes nomes de "herois" Afro-Brasileiros, na quase totalidade Bantos, especialmente quimbundos (Angola) quase todos esquecidos pelo que têm tratado do folk-lore no Brasil."
Antonio Joaquim Souza Carneiro (inicio de 1900)






O Limbo dos livros nunca é a morte porque o pai e a mãe dos livros somos todos nós.

(Eu, hoje um I-Tio, E-Tio, sei lá, um Tio on line comum desses aí, confesso aqui contrito o meu amor pelo papel dos livros).

Não sei o que faria se os livros não existissem neste meu mundinho restrito, porém exemplar. Difícil para muitos jovens de hoje entender isto, neste mar encapelado de mídias que virou a comunicação universal.

“Quem lê tanta notícia?”

Não sei se foi – na verdade sei, com certeza foi – por culpa de minha mãe, que tirou esta idéia da cabeça semi-analfabeta dela, esta coisa de me dar livros e gibis (quem ainda sabe aí o que é ‘gibi’?) como quem dá doces de presente.




O fato é que viciei no cheiro do papel impresso desde cedo, no colégio interno ainda, ali pelos meus oito anos de idade. E era papel impresso a muito tempo, daqueles velhos, folhas amareladas, cagadas e roídas de traças cultas, sumidades vorazes mais letradas do que qualquer um de nós.

Que eu me lembre assim, vívidamente, as minhas traças infanto-juvenis liam Arsène Lupin, Daniel Defoe, Julio Verne e até Monteiro Lobato. Liam também, avidamente gibis do Tarzan, Popeye, e aquelas coisas do Walt Disney: Patinhas, Pluto, Pato Donald (sonhava deliciado com as neo-colonialistas aventuras do Mickey Mouse, nas terras de Fu Man Chu, do Egito, de Machu pichu).

E não era por querer saber. Não era por querer ser letrado. Era o vício mesmo, se instalando, como ansia por maconha, cocaína, por heroína, por crack, os livros e os gibis ansiados – eu fissurado neles – como se fossem cachaça pura, escorrendo narinas adentro, olhos adentro, cabeça adentro, neurônios adentro, alma adentro como um grande amor.

Gosto do cheiro do papel novo sim. Mas a tinta fresca, aquele cheiro de não-sei-o-que recente que hoje me inebria, é apenas a parte mais recente do vício, droga leve, já meio malhada, como se diz. É que o que me dá barato mesmo, o que deu e dá onda (tanto que agora mesmo, neste instante, exulto e tremo de prazer) o que fez milhões e milhões de palavras grudarem em mim, nas memórias de mim para sempre, foi – e é – o cheiro acre que tem o papel passado, as palavras roídas por aquelas traças antigas, alunas residentes dos montes de papel velho que eu folheei, olhei e cheirei na minha infancia.

Conto, mas ninguém acredita: escrevo, escrevo – escrevi agora mesmo um livro inteiro, grandão, cheio de letras e figurinhas – consultando uma enorme bibliografia, recortando, pinçando, escaneando coisas. Pois, praticamente todos os calhamaços e livros que tive que consultar sobre tudo, história, romances, música, antropologia, verdades e mentiras, estavam ali, ao alcance da minha mão, em estantes ao meu lado, sujos, velhos amarfanhados de lidos, quase comidos. Não dei – juro – um passo fora de casa (e não falo da internet, claro) para consultar o que quer que fosse.

Foi um Google-exu, uma entidade-povo-da-rua invocada por minha mãe macumbeira que baixou em mim, foi isto que me fez ficar assim como sou, devo assumir. Foi o vício inoculado por aquela estranha mania dela, de minha mui letrada, embora semi analfabeta mãe querida, que me fez sair por aí garimpando em sebos – e que curioso: acho que as mães todas tinham a mesma mania antigamente porque na minha juventude era muito comum, ver jovens garimpando livros em sebos. Como traças.

(E por acaso você sabe mesmo o que é um ‘sebo’? Não? Pois saiba: ‘Sebo’ é como Google, só que Google, mermão…não tem cheiro)

Toda esta memorabilia emotiva está ligada ao amor irreprimível que tenho por este livro aí de cima, na foto. Um raro exemplo do fetiche avassalador que os velhos livros de papel são.
Ele se chama ‘Os Mitos Africanos no Brasil’.




Guardo-o há anos, oculto em segredo, com medo que o surrupiem de mim. Na vida soube da existência de apenas dois outros exemplares dele. Devem existir mais que isto, claro. Dez talvez.

Comprei-o num sebo no centro da cidade do Rio de Janeiro nos anos 70 do século 20, atraído apenas pelo nome, que expressava assim, diretamente o tema que abordava, mas que não dava nem de longe, a menor pista do ouro maravilhoso – e inusitado para mim – de seu conteúdo e de seus segredos.

Uma viagem este livro e seus mistérios.

Entre tantos mistérios revelados, por exemplo, uma pista para a origem remota do mito de Saci Pererê (veja as imagens ampliadas – todas – clicando sobre elas) na fabulosa história de um perneta que sequestra moças em sua Kora (e que seria um mito mandinga já que a Kora, é o nome de uma harpa-cítara africana que só existe na Guiné Bissau e em parte do Senegal, território mandinga, por suposto). Mas poderia ser também uma fusão com mitos bantu e yoruba, por conta de outros elementos curiosos, as ‘matambas’ citadas, o nome (‘Ossonhe‘) do personagem.

Aliás, vendo a história sugerida pela imagem, vocês não se lembram do mito supostamente europeu no qual se baseia a ópera ‘A Flauta Mágica’ não? O ‘Flautista de Hamelin”, gente! Aquele cara que, de vingança sequestra as criancinhas de uma aldeia, enfeitiçando-as com sua flauta.




Pois é. Dizem que os mitos humanos vieram todos do mesmo lugar: das cavernas.

Para continuar com os mistérios, o desconhecido autor Souza Carneiro, vinha a ser o pai de um dos mais respeitados etnólogos do Brasil: Edison Carneiro. Um especialista em cultura negra dos anos 30 aos 50 do século passado. Como podia ser – me perguntei logo que vi a uma nota do editor aludindo a este fato – que um livro tão denso de conteúdos idênticos aos abordados por Edison Carneiro não fosse jamais citado pelo próprio filho do autor?

Não seria lógico supor que os estudos do pai antecederam os do filho? No que consistiria a divergência entre os dois. Porque as conclusões de um são tão contraditoriamente diferentes, opostas mesmo em muitos aspectos?

Você pode ler a nota a que me refiro (na impossibilidade de escanear o raro livro, fotografei algumas preciosas páginas, entre elas a sugestiva nota do editor). Nela, reparem, está a sugestão de que pai e filho, por alguma razão misteriosa, não se transitavam, não se davam, “um não sabendo dos escritos do outro”, diz a nota. Como assim?

O fato é que na tese defendida pelo livro de Souza – não exatamente na tese defendida em si, mas explicitamente no que nela está cabalmente atestado, fruto do formidável senso investigativo de folclorista rigoroso que ele era – aparece um rol de contos tradicionais, lendas e mitos, ainda genuinamente africanos, a maioria totalmente desconhecidos por todos nós, recolhidos (alguns por Nina Rodrigues) aqui mesmo, no recôncavo baiano (entre o início do século 20 e os anos 30 do mesmo período, ocasião em que o livro foi publicado).




Amaldiçoado não sei por que (ou sei, mas nem preciso dizer) o livro de Souza Carneiro demonstra então uma quantidade enorme de equívocos e distorções etnológicas cometidos por quase todos os estudos posteriores (inclusive os de Edison Carneiro) os quais, omitindo ou subestimando certos aspectos desta herança africana cabal, viva, ainda visível naquela época – na intenção provável de legitimar outros elementos (como a indefectível ‘supremacia nagô’, por exemplo) tornaram ‘oficiais’, como conceito de Cultura negra baiana (ou mesmo cultura negra do Brasil) o que havia sido, na verdade, inventado por uma casta de doutores e iniciados na seita do Candomblé, com intenções que não nos cabe aqui repetir.

(É. Naquele nosso velho papo de Tio-Kota teimoso vivo falando isto por aí. Cobra matada, vejam agora vocês mesmos em que eu me baseava, no que me fundamentava e como, ao que tudo indica lendo o Souza, estava coberto de razão.)

Observem então, chafurdem estas poucas páginas fotografadas e vejam como são surpreendentes os dados contidos nas fichas e relatos de mitos recolhidos por Souza. Vejam como eles exibem um retrato da cultura da Bahia completamente diversa daquela que ‘oficialmente’ se perpetuou. Observem como, apenas numa vista rápida de olhos, se comprova a maciça e preponderante influencia de culturas africanas oriundas da área Congo-Angola (bantu), não só no Rio de Janeiro como já se atestou, mas ali mesmo, ao lado de Salvador.

Afinal – surpreenda-se como eu – porque será que estes dados essenciais à compreensão de nossas origens culturais mais caras e antigas, tão meticulosamente garimpados por Souza Carneiro (presumo que ele tenha dedicado a vida inteira a esta pesquisa) desapareceram assim, completamente dos livros, das bibliografias, quase nunca aparecendo – se é que apareceram um dia – nem mesmo como vaga citação em teses e dissertações.

O que teria contribuído para que este inestimável livro se tornasse assim tão desconhecido, maldito quase, caído neste buraco negro do qual alguns poucos exemplares puderam ser resgatados (entre eles este que possuo acidentalmente garimpado numa empoeirada banca de um sebo do Rio)?

E aqui, nos finalmentes, uma curiosa analogia se impõe: A mãe (a minha) a semi analfabeta que trouxe livros á luz para iluminar a vida do filho, servindo de contraponto dramático a esta história provável de um filho (Edison Carneiro) que, teria contribuído (no mínimo por omissão, fruto de algum ressentimento familiar, como saber a razão?) para lançar no limbo o luminoso livro do seu próprio pai.

É, mas por isto ou por aquilo, um livro no limbo – com suas verdades mesmo as mais relativas – não morre jamais. Pode-se entender isto perfeitamente agora.

Os virtuais não sei para onde irão no futuro, os de papel – como este meu do Souza – por certo se esfarinharão com o tempo, mas a sempre densa a alma dos livros será sempre imortal. E tudo porque são vício, daqueles incuráveis, que nem as traças dos doutos do mal destruirão.

Spírito Santo
http://spiritosanto.wordpress.com/2011/10/15/um-livro-velho-nunca-morre-porque-a-mentira-tem-perna-curta/

Outubro 2011

—————-
Onde? Quando?

O livro “Mitos Africanos no Brasil” de Souza Carneiro foi composto e impresso nas oficinas da empresa “Graphica da Revista Tribunaes“, á Rua Xavier de Toledo, 72 -São Paulo para a Companhia Editora Nacional, em Setembro de 1937.
Nota: O ilistrador é o grande Cícero Valadares da revista ‘O Malho‘.

terça-feira, 15 de novembro de 2011

Os Sudaneses são os Paulistas e os Bantos os Bahianos, certo?

Após ter privadamente comunicado e manifestado a minha insatisfação em relação aos comentários infelizes, engolfados nas ideologias racistas do século passado, em que absurdamente se afirma que uns africanos eram/são mais inteligentes que outros, o autor, a autora neste caso, defendeu-se dizendo que seria apenas uma opinião minha... um ponto de vista.

Demonstro e recito desde já um outro ponto de vista. Simplesmente mudando duas palavras dos comentarios originais da autora.

“Vieram pra’ ca’ pro Brasil pra’ trabalhar como escravos dois grandes grupos de negros. Os negros PAULISTAS e os negros BAHIANOS.

Na verdade os negros PAULISTAS e' que eram os intelectuais, o pessoal que era os ourives (o que executa ou vende objetos de ouro e de prata), o pessoal que trabalhava mais na igreja...Enfim...Era uma outra galera.

...E tinha os negros BAHIANOS que eram os mais brincantes...mais dançarinos, que faziam os trabalhos de roça (terra cheia de mato) e que eram os Congo, Benguelas, Moçambiques."
A. Kandimba

Assista o clip e terá uma melhor ideia sobre o assunto: