quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Os mitos Africanos no Brasil: Um livro velho nunca morre porque a mentira tem perna curta

" No reconcavo Bahiano registam-se , dentro outros, os seguintes nomes de "herois" Afro-Brasileiros, na quase totalidade Bantos, especialmente quimbundos (Angola) quase todos esquecidos pelo que têm tratado do folk-lore no Brasil."
Antonio Joaquim Souza Carneiro (inicio de 1900)






O Limbo dos livros nunca é a morte porque o pai e a mãe dos livros somos todos nós.

(Eu, hoje um I-Tio, E-Tio, sei lá, um Tio on line comum desses aí, confesso aqui contrito o meu amor pelo papel dos livros).

Não sei o que faria se os livros não existissem neste meu mundinho restrito, porém exemplar. Difícil para muitos jovens de hoje entender isto, neste mar encapelado de mídias que virou a comunicação universal.

“Quem lê tanta notícia?”

Não sei se foi – na verdade sei, com certeza foi – por culpa de minha mãe, que tirou esta idéia da cabeça semi-analfabeta dela, esta coisa de me dar livros e gibis (quem ainda sabe aí o que é ‘gibi’?) como quem dá doces de presente.




O fato é que viciei no cheiro do papel impresso desde cedo, no colégio interno ainda, ali pelos meus oito anos de idade. E era papel impresso a muito tempo, daqueles velhos, folhas amareladas, cagadas e roídas de traças cultas, sumidades vorazes mais letradas do que qualquer um de nós.

Que eu me lembre assim, vívidamente, as minhas traças infanto-juvenis liam Arsène Lupin, Daniel Defoe, Julio Verne e até Monteiro Lobato. Liam também, avidamente gibis do Tarzan, Popeye, e aquelas coisas do Walt Disney: Patinhas, Pluto, Pato Donald (sonhava deliciado com as neo-colonialistas aventuras do Mickey Mouse, nas terras de Fu Man Chu, do Egito, de Machu pichu).

E não era por querer saber. Não era por querer ser letrado. Era o vício mesmo, se instalando, como ansia por maconha, cocaína, por heroína, por crack, os livros e os gibis ansiados – eu fissurado neles – como se fossem cachaça pura, escorrendo narinas adentro, olhos adentro, cabeça adentro, neurônios adentro, alma adentro como um grande amor.

Gosto do cheiro do papel novo sim. Mas a tinta fresca, aquele cheiro de não-sei-o-que recente que hoje me inebria, é apenas a parte mais recente do vício, droga leve, já meio malhada, como se diz. É que o que me dá barato mesmo, o que deu e dá onda (tanto que agora mesmo, neste instante, exulto e tremo de prazer) o que fez milhões e milhões de palavras grudarem em mim, nas memórias de mim para sempre, foi – e é – o cheiro acre que tem o papel passado, as palavras roídas por aquelas traças antigas, alunas residentes dos montes de papel velho que eu folheei, olhei e cheirei na minha infancia.

Conto, mas ninguém acredita: escrevo, escrevo – escrevi agora mesmo um livro inteiro, grandão, cheio de letras e figurinhas – consultando uma enorme bibliografia, recortando, pinçando, escaneando coisas. Pois, praticamente todos os calhamaços e livros que tive que consultar sobre tudo, história, romances, música, antropologia, verdades e mentiras, estavam ali, ao alcance da minha mão, em estantes ao meu lado, sujos, velhos amarfanhados de lidos, quase comidos. Não dei – juro – um passo fora de casa (e não falo da internet, claro) para consultar o que quer que fosse.

Foi um Google-exu, uma entidade-povo-da-rua invocada por minha mãe macumbeira que baixou em mim, foi isto que me fez ficar assim como sou, devo assumir. Foi o vício inoculado por aquela estranha mania dela, de minha mui letrada, embora semi analfabeta mãe querida, que me fez sair por aí garimpando em sebos – e que curioso: acho que as mães todas tinham a mesma mania antigamente porque na minha juventude era muito comum, ver jovens garimpando livros em sebos. Como traças.

(E por acaso você sabe mesmo o que é um ‘sebo’? Não? Pois saiba: ‘Sebo’ é como Google, só que Google, mermão…não tem cheiro)

Toda esta memorabilia emotiva está ligada ao amor irreprimível que tenho por este livro aí de cima, na foto. Um raro exemplo do fetiche avassalador que os velhos livros de papel são.
Ele se chama ‘Os Mitos Africanos no Brasil’.




Guardo-o há anos, oculto em segredo, com medo que o surrupiem de mim. Na vida soube da existência de apenas dois outros exemplares dele. Devem existir mais que isto, claro. Dez talvez.

Comprei-o num sebo no centro da cidade do Rio de Janeiro nos anos 70 do século 20, atraído apenas pelo nome, que expressava assim, diretamente o tema que abordava, mas que não dava nem de longe, a menor pista do ouro maravilhoso – e inusitado para mim – de seu conteúdo e de seus segredos.

Uma viagem este livro e seus mistérios.

Entre tantos mistérios revelados, por exemplo, uma pista para a origem remota do mito de Saci Pererê (veja as imagens ampliadas – todas – clicando sobre elas) na fabulosa história de um perneta que sequestra moças em sua Kora (e que seria um mito mandinga já que a Kora, é o nome de uma harpa-cítara africana que só existe na Guiné Bissau e em parte do Senegal, território mandinga, por suposto). Mas poderia ser também uma fusão com mitos bantu e yoruba, por conta de outros elementos curiosos, as ‘matambas’ citadas, o nome (‘Ossonhe‘) do personagem.

Aliás, vendo a história sugerida pela imagem, vocês não se lembram do mito supostamente europeu no qual se baseia a ópera ‘A Flauta Mágica’ não? O ‘Flautista de Hamelin”, gente! Aquele cara que, de vingança sequestra as criancinhas de uma aldeia, enfeitiçando-as com sua flauta.




Pois é. Dizem que os mitos humanos vieram todos do mesmo lugar: das cavernas.

Para continuar com os mistérios, o desconhecido autor Souza Carneiro, vinha a ser o pai de um dos mais respeitados etnólogos do Brasil: Edison Carneiro. Um especialista em cultura negra dos anos 30 aos 50 do século passado. Como podia ser – me perguntei logo que vi a uma nota do editor aludindo a este fato – que um livro tão denso de conteúdos idênticos aos abordados por Edison Carneiro não fosse jamais citado pelo próprio filho do autor?

Não seria lógico supor que os estudos do pai antecederam os do filho? No que consistiria a divergência entre os dois. Porque as conclusões de um são tão contraditoriamente diferentes, opostas mesmo em muitos aspectos?

Você pode ler a nota a que me refiro (na impossibilidade de escanear o raro livro, fotografei algumas preciosas páginas, entre elas a sugestiva nota do editor). Nela, reparem, está a sugestão de que pai e filho, por alguma razão misteriosa, não se transitavam, não se davam, “um não sabendo dos escritos do outro”, diz a nota. Como assim?

O fato é que na tese defendida pelo livro de Souza – não exatamente na tese defendida em si, mas explicitamente no que nela está cabalmente atestado, fruto do formidável senso investigativo de folclorista rigoroso que ele era – aparece um rol de contos tradicionais, lendas e mitos, ainda genuinamente africanos, a maioria totalmente desconhecidos por todos nós, recolhidos (alguns por Nina Rodrigues) aqui mesmo, no recôncavo baiano (entre o início do século 20 e os anos 30 do mesmo período, ocasião em que o livro foi publicado).




Amaldiçoado não sei por que (ou sei, mas nem preciso dizer) o livro de Souza Carneiro demonstra então uma quantidade enorme de equívocos e distorções etnológicas cometidos por quase todos os estudos posteriores (inclusive os de Edison Carneiro) os quais, omitindo ou subestimando certos aspectos desta herança africana cabal, viva, ainda visível naquela época – na intenção provável de legitimar outros elementos (como a indefectível ‘supremacia nagô’, por exemplo) tornaram ‘oficiais’, como conceito de Cultura negra baiana (ou mesmo cultura negra do Brasil) o que havia sido, na verdade, inventado por uma casta de doutores e iniciados na seita do Candomblé, com intenções que não nos cabe aqui repetir.

(É. Naquele nosso velho papo de Tio-Kota teimoso vivo falando isto por aí. Cobra matada, vejam agora vocês mesmos em que eu me baseava, no que me fundamentava e como, ao que tudo indica lendo o Souza, estava coberto de razão.)

Observem então, chafurdem estas poucas páginas fotografadas e vejam como são surpreendentes os dados contidos nas fichas e relatos de mitos recolhidos por Souza. Vejam como eles exibem um retrato da cultura da Bahia completamente diversa daquela que ‘oficialmente’ se perpetuou. Observem como, apenas numa vista rápida de olhos, se comprova a maciça e preponderante influencia de culturas africanas oriundas da área Congo-Angola (bantu), não só no Rio de Janeiro como já se atestou, mas ali mesmo, ao lado de Salvador.

Afinal – surpreenda-se como eu – porque será que estes dados essenciais à compreensão de nossas origens culturais mais caras e antigas, tão meticulosamente garimpados por Souza Carneiro (presumo que ele tenha dedicado a vida inteira a esta pesquisa) desapareceram assim, completamente dos livros, das bibliografias, quase nunca aparecendo – se é que apareceram um dia – nem mesmo como vaga citação em teses e dissertações.

O que teria contribuído para que este inestimável livro se tornasse assim tão desconhecido, maldito quase, caído neste buraco negro do qual alguns poucos exemplares puderam ser resgatados (entre eles este que possuo acidentalmente garimpado numa empoeirada banca de um sebo do Rio)?

E aqui, nos finalmentes, uma curiosa analogia se impõe: A mãe (a minha) a semi analfabeta que trouxe livros á luz para iluminar a vida do filho, servindo de contraponto dramático a esta história provável de um filho (Edison Carneiro) que, teria contribuído (no mínimo por omissão, fruto de algum ressentimento familiar, como saber a razão?) para lançar no limbo o luminoso livro do seu próprio pai.

É, mas por isto ou por aquilo, um livro no limbo – com suas verdades mesmo as mais relativas – não morre jamais. Pode-se entender isto perfeitamente agora.

Os virtuais não sei para onde irão no futuro, os de papel – como este meu do Souza – por certo se esfarinharão com o tempo, mas a sempre densa a alma dos livros será sempre imortal. E tudo porque são vício, daqueles incuráveis, que nem as traças dos doutos do mal destruirão.

Spírito Santo
http://spiritosanto.wordpress.com/2011/10/15/um-livro-velho-nunca-morre-porque-a-mentira-tem-perna-curta/

Outubro 2011

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Onde? Quando?

O livro “Mitos Africanos no Brasil” de Souza Carneiro foi composto e impresso nas oficinas da empresa “Graphica da Revista Tribunaes“, á Rua Xavier de Toledo, 72 -São Paulo para a Companhia Editora Nacional, em Setembro de 1937.
Nota: O ilistrador é o grande Cícero Valadares da revista ‘O Malho‘.

terça-feira, 15 de novembro de 2011

Os Sudaneses são os Paulistas e os Bantos os Bahianos, certo?

Após ter privadamente comunicado e manifestado a minha insatisfação em relação aos comentários infelizes, engolfados nas ideologias racistas do século passado, em que absurdamente se afirma que uns africanos eram/são mais inteligentes que outros, o autor, a autora neste caso, defendeu-se dizendo que seria apenas uma opinião minha... um ponto de vista.

Demonstro e recito desde já um outro ponto de vista. Simplesmente mudando duas palavras dos comentarios originais da autora.

“Vieram pra’ ca’ pro Brasil pra’ trabalhar como escravos dois grandes grupos de negros. Os negros PAULISTAS e os negros BAHIANOS.

Na verdade os negros PAULISTAS e' que eram os intelectuais, o pessoal que era os ourives (o que executa ou vende objetos de ouro e de prata), o pessoal que trabalhava mais na igreja...Enfim...Era uma outra galera.

...E tinha os negros BAHIANOS que eram os mais brincantes...mais dançarinos, que faziam os trabalhos de roça (terra cheia de mato) e que eram os Congo, Benguelas, Moçambiques."
A. Kandimba

Assista o clip e terá uma melhor ideia sobre o assunto:

sábado, 22 de outubro de 2011

DNA mapeia origem de brasileiros na África

Decodificação genética comprova estudos do historiador Tarcísio José Martins quanto à origem da população negra brasileira afirmados na primeira edição de seu livro, Quilombo do Campo Grande – A História de Minas roubada do povo, e confirmados na sua segunda edição ainda não lançada.

Somos bantus!


                                      Foto:Feira Preta 2010



 

Um estudo genético identificou, pela primeira vez por meio de DNA, as regiões da África que mais contribuíram para a formação do povo brasileiro.



29 de maio de 2007
O trabalho, liderado pelo médico geneticista Sérgio Danilo Pena, professor titular de bioquímica da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), indicou que a maior parte dos ancestrais do grupo analisado veio do Centro-Oeste da África - região que inclui Angola, Congo e Camarões - seguida pelo Oeste (Nigéria, Gana, Togo, Costa do Marfim) e pelo Sudeste africano.
Segundo o estudo, que analisou o DNA mitocondrial dos indivíduos, 44,5% tinham uma ancestral no Centro-Oeste da África, 43%, no Oeste da África e 12,3%, no Sudeste, na região onde fica hoje Moçambique.


Chamado de marcador de linhagem, o DNA mitocondrial é passado pela mãe para os filhos. Na prática, o DNA mitocondrial de uma africana que viveu há 400 anos é idêntico ao de um descendente no Brasil, se não tiver havido nenhuma mutação.

Apesar de ter sido feito em um grupo de negros em São Paulo , o estudo tem uma representatividade nacional porque, com as migrações internas, durante e após a escravidão, a cidade se tornou, de certa forma, um caldeirão genético do Brasil.


Segundo Pena, a maior parte dos resultados confirma teses históricas sobre o tema, inclusive a descoberta mais recente de estudiosos de que Moçambique teve uma contribuição muito mais expressiva do que se acreditava antigamente.

Documentos queimados

Segundo o estudo, a origem dos escravos levados para o Brasil sempre foi um assunto nebuloso, sem documentação completa. Para evitar pedidos de indenização, documentos históricos sobre a escravidão foram queimados após a abolição, em 1888.
Acredita-se que entre 3,6 milhões e 4 milhões de escravos tenham sido trazidos para o Brasil entre 1550 a 1870. 


Mas não há dados, por exemplo, sobre o enorme número de africanos transportados ilegalmente após 1830, quando o Brasil assinou um tratado com a Inglaterra para acabar com o comércio de escravos. A falta dessas informações dificulta que se saiba, exatamente, de onde vieram africanos trazidos para o Brasil.


Além disso, o porto de embarcação, registrado nos arquivos, não reflete, necessariamente, a origem geográfica dos escravos que, muitas vezes, eram capturados no interior, a centenas de quilômetros do litoral.


'Cada porto drenava de uma área territorial grande. Às vezes, as pessoas eram capturadas e tinham de viajar mil quilômetros antes de chegar ao litoral', diz Pena, que também faz incursões pela história e pela antropologia social.

'Vingança do derrotado'

Para chegar aos números para cada região, Pena analisou as linhagens materna e paterna dos 120 indivíduos que participaram do estudo. O objetivo era chegar aos seus ancestrais mais distantes dos dois lados. 


Isso é possível pelo estudo do cromossomo Y, que só passa de pai para filho, e do DNA mitocondrial, que é herdado (pelos dois sexos) da mãe.


Esses marcadores de linhagem, salvo casos de mutação, não se misturam com os outros genes e mantêm-se praticamente inalterados ao longo das gerações.
Assim, um negro brasileiro 'carrega' no cromossomo Y informações genéticas do seu ancestral masculino de diversas gerações anteriores e no DNA mitocontrial, da ancestral feminina.

Bantus

Para discriminar as diferentes regiões, Pena contou com o princípio genético que chama de 'vingança do derrotado'.


Ele explica: um grupo chamado Bantu, que predominava no Oeste da África, espalhou-se pelo continente, e os homens passaram a se reproduzir com mulheres de outras regiões. 


Assim, o fruto desse 'cruzamento' passou a carregar também o DNA mitocondrial das mães, que acabaram deixando nos filhos gerados pelos homens do grupo dominador Bantu as informações genéticas sobre a região geográfica à que pertenciam.


'Quando o Bantu chega numa determinada região, ele, como dominador, se reproduz com as mulheres da região e aí o DNA mitocondrial das mulheres 'entra' na população Bantu. Por isso pudemos diferenciar os três grupos', afirma Pena.


Com a proibição do tráfico negreiro ao norte da linha do Equador, em 1815, a importância de Moçambique, no sudeste da África, como fonte de escravos aumentou e deixou uma marca genética expressiva nos descendentes de escravos no Brasil.


Segundo o estudo, 12,3% dos indivíduos analisados tinham uma ancestral materna na região onde fica hoje Moçambique, um percentual maior do que o esperado.


Apesar da marca genética importante, segundo o historiador Manolo Florentino, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a influência cultural dos moçambicanos na cultura brasileira foi muito mais sutil do que a de escravos de regiões mais ao norte do continente africano, que chegaram antes ao Brasil.


'Os moçambicanos foram os que menos preservaram sua memória. A reconstituição de comunidades africanas, misturadas a valores europeus – o sincretismo – tem uma dinâmica própria: quanto mais recente, menores as chances de que as comunidades se reproduzam e finquem raízes históricas', disse.

Legado

Segundo Florentino, por terem chegado ao Brasil mais tarde, os moçambicanos não tiveram o mesmo tempo que escravos de outras regiões para estabelecer laços entre famílias da mesma origem.


'Essa era uma tradição muito própria do cativeiro: a constituição de famílias escravas a partir de um critério endogâmico do ponto de vista étnico. Ou seja, um angola buscar uma angola , um mina buscar uma mina'.


'Os moçambicanos tiveram que se abrir, buscar esposas e maridos nascidos aqui ou escravos de outras regiões. Com isso, se pulverizou e enfranqueceu a possibilidade de que sua herança africana se reproduzisse', explicou Florentino.


A historiadora moçambicana Benigna Zimba, chefe do Departamento de História da Universidade Eduardo Mondlane, em Maputo , concorda com o historiador brasileiro.
'Os moçambicanos chegaram em um momento em que outras rotas de tráfico de escravos para o Brasil já estavam praticamente desenvolvidas. Isso fez com que a integração de Moçambique com o Brasil tenha sido problemática, porque trouxemos uma cultura que, de certa forma, teve de se adaptar à cultura de outros escravos que já estavam integrados', explicou.

Traços

Ainda que sem precisão, registros históricos já davam conta de um aumento expressivo da importância de Moçambique como fonte de escravos para o Brasil. 


'Eles representavam apenas 2% dos escravos no século 17, mas, com a interrupção do tráfico pelos ingleses ao norte da linha do Equador, o comércio no Sudeste da África cresceu e passou a representar cerca de 20% do total por volta de 1840', destacou Florentino, autor de vários livros sobre o tráfico e a escravidão.


Isto resultou, segundo o geneticista Sérgio Pena, em mais chances para os moçambicanos deixarem suas inscrições genéticas na população brasileira do que africanos que vieram antes, que, pelos maus tratos, tinham uma sobrevida muito curta no Brasil.
'A fecundidade era muito baixa até a melhora das condições de vida no século 19, quando medidas como a Lei do Ventre Livre começam a melhorar a expectativa de vida', disse Pena.


De acordo com o estudioso, muitas mulheres africanas que chegaram ao Brasil no século 16 e 17 não deixavam filhos, o que pode ter tido impacto no estudo das origens genéticas do povo brasileiro.

Cultura

Por outro lado, a herança cultural moçambicana 'se mistura a uma influência africana que está ela própria miscigenada com influências de culturas de outras partes da África', disse Zimba.


Em visita à Bahia , ela disse que viu no Brasil 'um pouco da maneira de se vestir, da alimentação, da forma espiritual, da dança, dos traços físicos, da forma de ser' dos nativos de Moçambique. A utilização do côco na comida, o uso de adereços e miçangas no vestuário, cultos como o makweana e o chisunpi remetem à cultura de Moçambique.
'Mas é difícil dizer se esta grande influência africana vem de uma região específica.'
Entretanto, sinais de que houve um valioso intercâmbio cultural também são evidentes em Moçambique. 'O Carnaval, por exemplo, é comemorado em Moçambique exatamente nas regiões que mais exportaram escravos para o Brasil, como o porto de Quelimane. Aí temos também a cultura de batata-doce, trazida pelos traficantes de escravos que vinham do Brasil.'


Uma vez que a troca cultural da era escravagista funcionou mais fortemente no sentido oposto, no entanto, a historiadora acredita que 'a busca da identidade deve se centrar muito mais no Brasil'.


Para Zimba, a busca de raízes americanas no continente africano pode ser uma iniciativa positiva. 'Depende da intenção. Há movimentos políticos que apenas respondem a certas modas da política. Mas, em geral, a busca da origem étnica é boa, no sentido de que ela aproxima os povos.'

FONTE: http://www.bbc.co.uk em 29-05-07 (reproduzido do http://www.cedefes.org.br)



*Desconhecemos a familia na foto

domingo, 16 de outubro de 2011

Minas Gerais é toda bantu?

                         Escravas da Mina de Morro Velho, final do século XIX.
                       


Minas só, não. O Brasil é bantu.

Por volta de novembro de 2002, os confrades Falabella e Lasmar, do Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais – IHGMG, enviaram-me matéria publicada no Jornal do Brasil, onde pude ter notícia da maravilhosa pesquisadora e etnolinguista baiana Yeda Pessoa de Castro.


Currículo nacional e internacional para acadêmico nenhum botar defeito, Yeda, no dizer da jornalista Eliane Azevedo, explodiu a polêmica: “o idioma que se fala no Brasil não é europeu.

Trata-se de um português africanizado - uma extraordinária convergência entre o banto (grupo etnolingüístico da África meridional) e a língua de Camões. ''No encontro entre as línguas africanas e o português arcaico, em lugar de surgir um conflito, houve um nivelamento, um processo de africanização'', garante a ex-diretora do Centro de Estudos Afro-Orientais da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e integrante do Comitê Científico Brasileiro do Projeto Rota do Escravo, da Unesco.

Yeda não poupa filólogos e estudiosos acadêmicos para apontar que só o preconceito etnocêntrico fez com que palavras que garante ser banto, como mocotó e moranga, tenham atribuição indígena nos dicionários. E que só se estudou a cultura iorubá porque era um povo que tinha escrita[4]. 

''Chegou-se a um estereótipo de que os iorubás eram superiores. Zumbi dos Palmares era banto, mas, no filme de Cacá Diegues, os palmarinos falam iorubá, quando não havia um deles ainda no Brasil'', argumenta, furibunda[5]. A tese de Yeda está exposta no recém-lançado Falares africanos na Bahia (Topbooks, 368 págs.) - que o colunista do Jornal do Brasil Millôr Fernandes classifica como sua ''atual bíblia''.

Yeda tem mesmo total razão.

Segundo números tabulados por Maurício Goulart[6], o maior pico de sudaneses ocorreu em 1720, 60,22% da população negra, quando começou a decrescer velozmente ante o crescimento dos bantus que chegaram a ser 86,41% em 1790, contra apenas 13,59% de sudaneses.

DÉCADA
SUDANÊS
% S/TOT
BANTU
% S/ TOT
TOTAL
MÉDIA ANO
1701-1710
83,700
54.46
70,000
45.54
153,700
15,370
1711-1720
83,700
60.22
55,300
39.78
139,000
13,900
1721-1730
79,200
54.14
67,100
45.86
146,300
14,630
1731-1740
56,800
34.20
109,300
65.80
166,100
16,610
1741-1750
55,000
29.71
130,100
70.29
185,100
18,510
1751-1760
45,900
27.10
123,500
72.90
169,400
16,940
1761-1770
38,700
23.51
125,900
76.49
164,600
16,460
1771-1780
29,800
18.47
131,500
81.53
161,300
16,130
1781-1790
24,200
13.59
153,900
86.41
178,100
17,810
1791-1800
53,600
24.19
168,000
75.81
221,600
22,160
1801-1810
54,900
26.62
151,300
73.38
206,200
20,620
TOTAIS
605,500
32.01
1,285,900
67.99
1,891,400
189,140
Méd/Década
55,045
32.01
116,900
67.99
171,945
17,195

Mas não é só. Duas questões há a acrescentar:

a) os números acima provavelmente abranjam também São Paulo, Rio de Janeiro, Goiás e Mato Grosso e não apenas as Minas, onde é provável que o número de sudaneses fosse menor ainda;

b) no caso de Minas, não só os pretos eram em maioria bantu, como os próprios brancos, mormente os chamados de “ilhéus”, cuja maioria, na verdade vinha de Angola, Moçambique e outras possessões bantos da África, de onde conheciam as línguas por serem naturais ou moradores de longa data nessas colônias portuguesas.


Neste sentido, não nos esqueçamos de que hoje não é mais mera tese de que o povo brasileiro, até a descoberta das Minas, falava quase que exclusivamente a língua geral. Assim, no outro lado da moeda, mais uma vez acertou na mosca a maravilhosa etnolinguista: “(...) o africano adquiriu o português como segunda língua e foi o principal responsável pela difusão da língua portuguesa em território brasileiro”[7].

Evidente que convivendo com os portugueses em Angola e Moçambique, esses bantus tinham pelo menos alguma noção do português, quando não o falavam correntemente.

[4] Yorobás não tinham escrita coisa nenhuma. Como ensina Yeda, islamizados que eram, só faziam copiar textos do alcorão em língua e caracteres árabes.

[5] O filme de Cacá Diegues teve que ser redublado, tirando-se-lhe a língua yorubá.

[6] Estimativa de Maurício Goulart, in Devassa da Devassa, de Keneth Maxwel, 1995, 4ª Impressão, pgs. 290/291.
[7] Falares Africanos na Bahia, pg. 78.

Escrito por Tarcísio José Martins   
Ter, 30 de Novembro de 1999

Foto:Blog da Anabela Jardim

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

"DO SAMBA AO FUNK DO JORJÃO" - de Spirito Santo

Spirito Santo, escritor, pesquisador e sambista, escreve um histórico comovente sobre a saga do samba no Brasil, uma visão diferente, do ponto de vista de quem habita desde criança — melhor, desde a vinda para o Brasil de seus ancestrais, provavelmente angolanos — o ambiente em que seu livro se desenrola. Spirito não poupa ninguém, menos ainda os seus próprios pares, enquanto imprime a seu livro a incendiária vitalidade das polêmicas sobre a origem do samba que conflagra amigavelmente as comunidades. Uma visão prazerosa e às vezes dolorosa, sempre apaixonada, compilada sob o formalismo informal de um estudo acadêmico em ritmo de… samba, onde dança a “norma culta” ao som do batuque e da cuíca, ngoma puíta, temperada de crítica inteligente.



Lançamento oficial 06 de Outubro de 2011 - 19.30hs -Livraria Cultura - Fashion Mall, São Conrado.

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Verger: A cegueira não é branca, a cosmologia é que foi fraudada

A etnofantasia  nagô à luz do bom devoto Pierre Verger  




Este texto do Pierre Verger que reproduzo em gordas ‘pílulas’ abaixo, é uma das minhas principais fontes para defender a tese de que o mito da ‘Supremacia’ Nagô’  ainda em voga no Brasil e na Diáspora toda, foi meticulosamente construído ao longo do século 19 por diversos meios e intenções.

(E está no livro porque ainda dizem por aí que o Samba – como tudo do negro no Brasil -  também seria nagô.)

A outra referencia essencial que utilizei, entre tantas outras, foram as teses do antropólogo Luiz Nicolau Parès das universidades de Michigan e Federal da Bahia.

Parès entrou na dança porque eu, embora já intuísse há tempos, não sabia ainda (nem sei se Verger chegou a saber) que a ‘construção deste conceito, para mim socialmente venenoso e deletério, tinha outros fundamentos ideológicos muito mais perversos do que as meras distorções etnológicas as quais Verger se refere de forma tão enfática.

(E reitero aqui que só insisto no tema porque passei a semana ouvindo provocações de uns poucos leitores baianos que insistem em tentar desqualificar meus argumentos – que nem exclusivamente meus são – com abobrinhas apressadas e mal passadas).

O fato é que – quer queiram ou não queiram os bairristas baiano-nagô – sabemos agora que este processo de ideologização do Candomblé também se deu no decorrer do século 19, localizado no eixo Lagos-Salvador, para só depois provavelmente assumir– embora não se saiba se deliberadamente – a função de anteparo atenuador de conflitos, nas tensas relações sócio raciais no Brasil, tornando-se um dos instrumentos cruciais da afirmação de uma ideologia de casta (uma minoria negra superior ao resto), a serviço do mesmo elitismo original da seita fundada no século 19, calcado numa suposta ‘superioridade’ da minoria étnica nagô perante a cultura dos demais (a maioria) dos negros do Brasil.

O tema quente e cabeludo ao qual tenho me dedicado com especial afinco porque o considero crucial para o avanço do impasse produzido pelo racismo no país, embora tenha atraído a presumida atenção de muita gente não tem alimentado ainda tanto feedback quanto eu gostaria. Ao que parece o mito está fortemente arraigado no pensamento dos movimentos negros do país, como uma cegueira branca de quem não quer ver.

Tirando esta minha ênfase sentida, o certo é que poucos se arvoraram até agora a emitir alguma opinião. Há como disse e com efeito, apenas comentários ofendidos, ressentidos – alguns alarmistas, terroristas até – em geral me admoestando sarcasticamente, me tratando como um iconoclasta abusado ‘denegrindo’ um conceito chave, baluarte da cultura negra do Brasil: o velho tabu do Candomblé.

Acho lamentável – na verdade constrangedor – que tanto esforço argumentativo, baseado, como já disse em teses muito bem aprofundadas de outros respeitáveis estudiosos do assunto (aos quais eu recorro e cito insistentemente) esteja sendo tratado com tanta parcimônia e descaso, incitando muito mais a arrogância de certos leitores ditos especialistas interessados no assunto do que uma generalizada e madura reflexão, como se poderia esperar.

Pura incúria intelectual, a repercussão surda que o tema provoca parece até com aquela empáfia burra dos reis de terra de cegos, aqueles que ninguém tem coragem de avisar que estão nus.

Bem. Sirvam-se aí então. O texto do Pierre Verger (um clássico estranhamente tão citado quanto pouco lido) é uma referencia imperdível para quem quer mesmo começar a entender o assunto.
Melhor para mim, que tendo Verger como advogado, posso me reservar o direito de, desta vez nem gastar mais meus modestos argumentos de franco atirador.

É de cadeira ou camarote que compartilho então estas claras idéias do não acadêmico douto que foi Verger, sincero adepto e devoto do bom Candomblé, fotógrafo e etnólogo franco-afro-brasileiro de coração, referencia internacional sobre o tema.

Faço minhas – pelo menos conceitualmente – as palavras dele. E Nem está mais aqui quem falou.

Etnografia yoruba e probidade científica

 Pierre Verger em seu clássico artigo (trechos)

“…As definições dadas aos orixás, os deuses iorubas, foram efetivamente, a partir de determinada época (1884, para sermos precisos) embelezadas com detalhes tão pitorescos quanto inexatos. Essas definições foram a seguir eruditamente retomadas, doutamente citadas e entusiasticamente comentadas pela maioria dos que a partir de então escreveram sobre o assunto..”
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“…Ao longo de minhas pesquisas, pude constatar de que maneira informações expressas muitas vezes descuidadamente por pessoas, respeitáveis noutros domínios, criaram uma tradição aparentemente lógica, mas enganadora. Com o tempo foi-se assim acumulando vasta documentação escrita, tida como erudita porque baseada em textos, a única fonte válida aos olhos dos letrados, mesmo que esses textos fossem inspirados por escritos anteriores incorretos e até contrários à verdade. Essas informações foram copiadas e publicadas inúmeras vezes, sem que sua autenticidade fosse posta em dúvida…“
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“…Eis porque somos obrigados a pôr em questão neste artigo certas informações que estão na origem de sistemas teogônicos e cosmogônicos eruditos e a constatar que, estando desprovidas de fundamentos, não passam de gratuidades ou de construções mais ou menos habilidosas do espírito.”
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“…Ao lado e independentemente dessa tradição oral recolhida no coração da terra iorubá, a etnografia religiosa iorubá tem sido vítima, desde 1884 (e o é ainda), de informações fantasistas recolhidas muitas vezes em regiões periféricas daquelas onde a civilização iorubá se desenvolveu. Felizmente, nos é possível encontrar os autores, assinalar o momento exato do nascimento e o encaminhamento dessas noções errôneas através dos diversos escritos que têm tratado da questão. Também nos é fácil determinar o grau de competência e de seriedade, avaliar o crédito que pode ser concedido às suas informações e compreender o que está por trás de tudo que possa influenciar o caráter dos informes publicados por eles…”
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“…Nas linhas seguintes desenvolveremos esses diversos pontos detalhadamente, pois essas falsas tradições têm figurado como um postulado e freqüentemente têm sido aceitas sem discussão por numerosos autores.”
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“…Alonguei-me um pouco sobre os danos da influência das lendas inventadas pelo padre Baudin e copiadas pelo tenente coronel Ellis, mas era necessário fazê-lo, pois os absurdos publicados por eles servem de ponto de partida e de inspiração para outras e de fundamento para dissertações sobre sistemas teogônicos habilmente estruturados e ornados com efeites psicológicos e genéticos sofisticados, sobre os quais falaremos mais adiante.”
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As lendas do padre Baudin tiveram vida longa, atravessaram o Atlântico, não na memória dos escravos transportados, pela simples razão de que o tráfico negreiro já tinha acabado na época em que Baudin convertia os pagões, mas por intermédio do livro de Ellis, de que Nina Rodrigues teve conhecimento ao escrever seu livro Os Africanos no Brasil…”
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“…Este texto de Epega, juntamente com as indicações errôneas do padre Baudin, serve de fundamento para um livro recente intitulado Os Nagô e morte  (Juana Elbein dos Santos, 1975) onde a autora expõe uma concepção toda pessoal das leis que regem o que ela chama de “entidades sobrenaturais” (ib.: 72) dos Nagô (Iorubá). “
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“…mas não posso deixar de lembrar que durante a pesquisa de campo geralmente se estabelece uma situação desagradável entre o pesquisador e a pessoa entrevistada. Esta última pega rapidamente o sentido e o pensamento do pesquisador, e cheia de boa vontade, dá as respostas que casam com a hipótese da pesquisa desejada. Ainda que o informante não deforme voluntariamente os fatos, tenta ao menos exprimir-se em termos que ele quer tornar compreensíveis ao interlocutor, sendo o resultado a maior satisfação deste último e um grande prejuízo para a verdade. “
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“…O abade Bouche reconhecia isso entre 1866 e 1975 (Bouche, op.cit.: 109), dizendo “que os intérpretes negros visam menos a ser exatos do que a não descontentar o branco (freqüentemente irascível quando se vê contrariado em suas teorias pré-estabelecidas), (4) e eles (os intérpretes) não se incomodam com interpretações que sabem ser de seu gosto, ou, pelo menos, de suas idéias…”
 
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   “…O que nos entristece e nos constrange no livro da autora (Juana Elbein dos Santos)– que é sua tese de doutoramento de terceiro ciclo pela Sorbonne — não é tanto o fato de ela haver-se inspirado em informações errôneas ou provenientes de etnias não-nagô, mas o fato de que, para edificar e “estruturar” sua obra, ela manipule e modifique os documentos citados em apoio ao sistema concebido por ela, o que é grave e constitui falta total de probidade científica…
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“…A posição de todos esses orixás depende da história das cidades onde representam divindades protetoras. Xangô, quando vivo, era o terceiro rei de Oyó; Oxum fez um pacto em Oxogbo com Laro, o fundador da dinastia dos reis locais; Odùdùa, fundado da cidade de Ifé, cujos filhos se tornaram reis de outras cidades iorubás, conservou um caráter mais histórico e até mais político que divino e não tem nada a ver com os “ventres fecundados” da autora de Os Nagô e a morte…”
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“…Ela  (Juana Elbein dos Santos) fundamenta então agora uma teoria bastante sofisticada, confundindo, entretanto, e reunindo sob uma mesma designação noções que são na realidade diferentes, sem haver mesmo entre elas nenhuma relação de significado. O mais grave é que o conteúdo da obra Os Nagô e a morte, como aconteceu com escritos precedentes, citados no início deste artigo serve de referência e ponto de partida para novos trabalhos baseados assim em informações inexatas. Existe na autora uma tendência um pouco hoffmanesca para as almas-do-outro-mundo, as feiticeiras e Exu. “
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“…Ela tem todo o direito de seguir suas inclinações, mas onde estamos menos de acordo é quando, partindo de dados inexatos, algumas vezes manipulados, ela edifica “sistemas” de uma lógica impecável, muito bem acolhidos, diga-se de passagem, nos congressos científicos internacionais, mas que, examinados com cuidado, são um tecido de suposições e de hipóteses inteligentemente apresentadas, não tendo nada a ver com a cultura dos Nagô-Iorubá e correndo o risco de contaminar as tradições transmitidas oralmente, ainda conservadas nos meios não-eruditos…”
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…Será que ainda falta dizer alguma coisa?

SPIRITO SANTO
http://spiritosanto.wordpress.com/


Foto: Mestre Didi e Juana Elbein dos Santos.

"Juana Elbein dos Santos - Antropóloga e coordenadora geral da Sociedade de Estudos da Cultura Negra no Brasil. Seu livro Os Nàgô E A Morte Pàde, Àsèsè e o Culto Égun na Bahia foi Tese de Doutorado em Etnologia na Universidade de Sorbonne em 1972, traduzido para o português pela Universidade Federal da Bahia."
   

sábado, 10 de setembro de 2011

Falares africanos na Bahia:

A etnolingüista Yeda Pessoa de Castro, de 65 anos, levou 40 anos de estudos na Bahia, no Congo, na Nigéria e em Trinidad y Tobago para trazer à tona uma tese polêmica:

o idioma que se fala no Brasil não é europeu. Trata-se de um português africanizado - uma extraordinária convergência entre o banto (grupo etnolingüístico da África meridional) e a língua de Camões.

''No encontro entre as línguas africanas e o português arcaico, em lugar de surgir um conflito, houve um nivelamento, um processo de africanização'', garante a ex-diretora do Centro de Estudos Afro-Orientais da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e integrante do Comitê Científico Brasileiro do Projeto Rota do Escravo, da Unesco.



Yeda não poupa filólogos e estudiosos acadêmicos para apontar que só o preconceito etnocêntrico fez com que palavras que garante ser banto, como mocotó e moranga, tenham atribuição indígena nos dicionários. E que só se estudou a cultura iorubá porque era um povo que tinha escrita.


''Chegou-se a um estereótipo de que os iorubás eram superiores. Zumbi dos Palmares era banto, mas, no filme de Cacá Diegues, os palmarinos falam iorubá, quando não havia um deles ainda no Brasil'', argumenta, furibunda.

A tese de Yeda está exposta no recém-lançado Falares africanos na Bahia (Topbooks, 368 págs., R$ 40) - que o colunista do Jornal do Brasil Millôr Fernandes classifica como sua ''atual bíblia''.

A seguir, a entrevista de Yeda:

- A senhora defende a tese de que o português falado no Brasil é africanizado. Por quê?

- Dos séculos 16 ao 19, os bantos foram o grupo negro de maior densidade populacional no Brasil e se distribuíram por várias regiões.

Do ponto de vista da linguagem, os aportes, os empréstimos africanos do português no Brasil, graças à escravidão, são todos de origem banto.

E tão integrados ao sistema lingüístico do português (o que já demonstra uma antigüidade maior e, portanto, uma aproximação e uma influência maiores), que deles se formam derivados em português a partir de uma raiz banto.

De molambo vem esmolambado, molambento; de fuxico, fuxiquento, fuxiqueiro. Além disso, as denominações das religiões afro-brasileiras são de origem banto: candomblé, macumba, catimbó, calundu - que é a forma mais antiga de denominação dessas religiões e já se encontra registrada em Gregório de Mattos (poeta barroco) no século 17.

- Houve uma integração das palavras banto ao português?

- Totalmente. É uma integração tamanha que a gente não se apercebe de sua origem.

É o caso, por exemplo, de caçula, única palavra que temos para designar o filho mais novo. A palavra em português é benjamim, que, no Brasil, é uma extensão de tomada.



O mesmo acontece com cochilar: ninguém diz dormitar, no Brasil.

E bunda que, graças à mídia, substituiu nádegas. Bunda é banto. Estamos sentados no banto!

- Por que pouco se estuda essa influência, se é assim tão profunda?

- Há pouca informação sobre as línguas banto no Brasil. A posição das nossas universidades é não admitir que línguas sem tradição de letras, sem escritura, pudessem influir numa língua de tradição literária como a portuguesa.



Passa-se a idéia de que os africanos só começaram a falar língua de gente quando aprenderam o português, como se antes não falassem língua humana nenhuma.

- A maioria dos estudos sobre o tema concentra-se na influência iorubá, não é?

- Isso aconteceu a partir do trabalho do médico Nina Rodrigues, nos anos 30. Os iorubás, que foram trazidos para o Brasil no final do século 18 e, mais marcadamente, no século 19, já no fim do tráfico negreiro, enraizaram-se em Salvador, um centro urbano. Por isso, tiveram condições de resistir mais à língua e à religião dos portugueses e se conservar mais próximos às suas raízes do que os demais povos, que estavam aqui há dois, três séculos.

Em seu filme Quilombo, Cacá Diegues pôs os palmarinos falando iorubá quando nem havia iorubás no Brasil. Zumbi dos Palmares era banto.

Depois, a Fundação Cultural Palmares, do Ministério da Cultura, patrocinou uma versão televisiva em que os palmarinos falavam língua de preto-velho, cheio daqueles zi, que existem no banto, sim, mas só em algumas palavras.

Acontece que os iorubás tinham uma escrita, o que criou o estereótipo de que eram superiores aos demais, que teriam sido absorvidos por eles.

- E não foi assim?

- Ora, qualquer falante de uma língua tem a tendência de introduzir numa nova língua adquirida seus hábitos articulatórios, de pronúncia.

Como esses bantos, maioria no Brasil até o século 19, não teriam deixado nenhum vestígio de seus falares no português que falamos no Brasil? A minha perplexidade começou a partir daí.

- E a que conclusão a senhora chegou?

- A de que, no encontro das línguas africanas, o banto em particular, com o português arcaico, em vez de emergir uma nova língua - uma forma crioula, como no Caribe - aconteceu um processo de africanização. Por quê? Em função da semelhança estrutural entre o banto e o português arcaico.

- Como assim?

- As línguas banto têm sete vogais orais, do ponto de vista da pronúncia. Acontece o mesmo no português do Brasil e o português arcaico: nós temos a, é, ê, i, ó, ô, u. É uma estrutura extremamente vocalizada.

Não existe uma sílaba que não seja acompanhada de uma vogal. Mesmo as sílabas átonas são pronunciadas no Brasil como nas línguas banto.

No Brasil, a gente diz: menino. Em Portugal, hoje, fala-se apenas a vogal central: mnino.

Por conta do banto, nossa tendência é não pronunciar os erres finais dos infinitivos.

Por exemplo: falá e não falar.

Temos também a vocalização do l final.

Só Getulio Vargas falava Brasil.

Mas mesmo os apresentadores do Jornal Nacional, um padrão de português, falam Brasiu.

No gol do Brasil, berra-se Brasiuuuuu.

Como no banto, uma sílaba não é fechada com consoante e sim, com vogal.

- Se o que falamos é uma mistura de português com banto, onde foram parar as línguas indígenas?

- Os índios cedo se retiraram das cidades para as matas. A influência das línguas indígenas é mais localizada em determinadas áreas rurais, enquanto que os negros africanos, majoritários, influenciaram cidades e zonas rurais. Aos vestígios indígenas no português, foram sobrepostos os falares africanos.

- A senhora acha, então, que existe uma supervalorização da influência indígena no português?

- Exatamente. E o grande incentivador dessa corrente no Brasil, que procurava origem indígena em termos que não se identificava como lusitanos, foi o lingüista Teodoro Sampaio.

É o caso, por exemplo, de mocotó. Para Sampaio, mocotó viria de mbokotog, uma coisa que treme, que é mole, numa relação com o aspecto visual da comida. Mas é uma palavra banto. Os índios não conheciam gado bovino, não podiam ter uma palavra para isso. Há uma tendência até hoje de não dizer que as palavras são africanas. A academia sempre quis mostrar que o português do Brasil não é africanizado.

- Pode dar outros exemplos?



- No Aurélio, balangandã aparece como um termo onomatopaico, a imitação de ruído de objetos que tilintam enquanto se movem. O balangandã é palavra banto, que não imita ruído de espécie alguma: quer dizer penduricalho e também testículos. Veja o ridículo de dizer que testículos tilintam.



- Quer dizer que, apesar dos esforços dos colonizadores, não falamos uma língua européia?

- Não. Chegamos a uma convergência, graças à extraordinária coincidência de estruturas entre o banto e o português. Arrisco dizer que a alegada unidade lingüística do português se deve sobretudo aos falantes africanos. Eles foram os agentes transformadores e difusores da língua portuguesa em território brasileiro.

- É uma idéia polêmica.

- Sei que estou pregando no deserto. Tenho uma história curiosa para ilustrar esse esquecimento da influência africana no português.

Certa vez, encontrei o ex-presidente José Sarney e o cumprimentei: O senhor deu um excelente exemplo de africanização do português no Brasil. Como se sabe, o Maranhão se orgulha de falar um português castiço. Mas Sarney entrou para a Academia Brasileira de Letras tendo como carro-chefe o livro Marimbondos de fogo. Eu disse para ele: Deveria ser Vespas de fogo, porque marimbondo é uma palavra africana. Ele ficou espantadíssimo...


Yeda Pessoa de Castro: ''A integração entre português e banto é tamanha que a gente não se apercebe da origem africana de palavras como cochilar ou marimbondo''

fonte :

Com a África na ponta da língua

Pesquisadora baiana garante que o Brasil africanizou o português de Camões

ELIANE AZEVEDO



O glossário da polêmica

Balangandã

O Aurélio e o Houaiss juram tratar-se de uma onomatopéia, ou seja, uma palavra que representa o som do objeto - no caso, o tilintar dos colares das escravas. Mas Yeda registra: vem do banto mbalanganga, que significa tanto penduricalho como testículos.



Caçula

A origem é, em quicongo, kasuka e em quimbundo, kasule. Em português castiço, a palavra inexiste. O filho mais novo é chamado de benjamim.

Cafuzo

Para o Aurélio, pode ser uma corruptela de cara fusca, já que existe a forma carafuzo. Para Yeda, não há dúvidas. É banto: nkaalafunzu, que significa mestiço.


Cochilar

Soa português lusitano, mas é banto. Vem de kushila. Na terrinha, diz-se dormitar.

Marimbondo

Vem de (ma)di(m)bondo em quimbundo e alimbondo em umbundo, embora seja outra que pareça totalmente natural em português. Em tempo: o termo lusitano é vespa.

Minhoca

O Houaiss diz que a palavra tem origem desconhecida e cita autores que descartam uma raiz africana. O glossário de Yeda registra (mi)nyoka, ou seja, cobra, como a chave do mistério.

Mocotó

Yeda sustenta que a palavra vem do banto (ma)kooto, termo que designa pernas ou patas. Houaiss e Aurélio trazem a antiga versão de que a origem é tupi: mbokotog, ou que faz balançar.

Moranga

O Aurélio aposta na origem tupi, morãg, que teria como referência os gomos arredondados da abóbora. Houaiss traz a etimologia adotada por Yeda: manyangwa, que significa, exatamente, abóbora.
Quilombo

Embora não haja dúvidas sobre o fato de ser um termo banto (kilombo), no filme de Cacá Diegues, Quilombo, os personagens que viviam em Palmares falavam iorubá...

Songamonga

Parece gíria de tempos antigos. Os dicionários garantem que tem origem espanhola: songa, ou burla (zombaria), sendo o monga apenas uma rima aleatória. Em banto, porém, há sungumuka, usado, inclusive, para adjetivar uma roupa que caísse de forma desajeitada na pessoa.



Yeda Pessoa de Castro:

''A integração entre português e banto é tamanha que a gente não se apercebe da origem africana de palavras como cochilar ou marimbondo''

Um mundo de palavras


Há muito mais da África na língua falada no Brasil - sobretudo na Bahia - do que supõem os acadêmicos que estudam o português formal.

Invisíveis perante estudiosos durante séculos, os falares africanos impregnaram o português arcaico, a ponto de palavras originárias dessas línguas serem usadas no dia-a-dia sem que a elas se dê o crédito devido, inclusive nos dicionários.


Em algumas regiões da África existem estudos sobre essa influência. Por aqui, essa aceitação implicaria "reescrita" da história da formação do português brasileiro, explica a etnolingüista baiana Yeda Pessoa de Castro.

O português é africanizado principalmente por conta da influência das línguas de origem bantu (ou banto) - região da qual foi retirada, à força, a maior parte dos negros escravizados que para cá foram trazidos nos primeiros séculos da Colônia.



Diferente, portanto, da difundida idéia que entende o iorubá como "a" língua africana. Esse imaginário é forte a ponto de ter existido projeto de lei querendo instituir o iorubá como língua de aprendizado nas escolas da Bahia. Como se essa fosse a única língua na África.



FAMÍLIAS LINGUÍSTICAS - Calcula-se em torno de 1.900 línguas primárias na África, agrupadas em quatro famílias lingüísticas, segundo estudos de Joseph Greenberg (1955):

afro-asiática; nilo-saariana; coissã e niger-congo (estas duas últimas em territórios abaixo do Saara). São dois grupos de línguas: as oeste-africanas (do Senegal até a Nigéria) e o banto (território subequatorial).

Certamente que as línguas de origem iorubá também estão presentes nos falares da Bahia, mas se concentram, sobretudo, no domínio religioso e em Salvador (ebó; ialorixá...).

Porém, esse traço lingüístico, por ser muito mais recente do que o banto - os africanos iorubás foram trazidos para cá 200 anos depois que esses primeiros - não teve a mesma influência que esta primeira na formação da língua falada aqui.



"No que concerne à influência banto, ela é muito mais profunda por ter sido a mais antiga no Brasil. Este fato é revelado pelo grande número de palavras de base banto correntemente empregado no português do Brasil - uma média de 75% - e de derivados portugueses formados a partir de uma mesma raiz banto (...) sem que os locutores brasileiros tenham consciência de que essas palavras são de origem africana, muito menos banto", escreve a etnolingüista no texto "Presença da África na Bahia".

Quando os navios com escravos iorubás aportaram no Brasil (conseqüência da destruição do reino iorubafone de Ketu e, no século XIX, do Império de Oyo, na hoje Nigéria), a mão-de-obra escrava se fazia necessária mais nas cidades, sobretudo litorâneas, como é o caso de Salvador (a mão-de-obra banto, antes, era usada sobretudo nos engenhos).

Daí por que quando Nina Rodrigues, no início do século passado, escreve o livro "Africanos no Brasil", tendo concentrado sua pesquisa em Salvador, descobre a forte influência iorubá por aqui, baseado nas pesquisas em terreiros de candomblé. Os estudos nos terreiros de tradição iorubá também encantaram o antropólogo Pierre Verger.

"Até então, as pesquisas, com raríssimas exceções, estavam concentradas na cidade do Salvador e em determinados terreiros de candomblé onde a presença religiosa iorubá é bastante evidente, fazendo com que a tradição de chamar a cidade do Salvador pelo seu antigo nome de Bahia terminasse por generalizar inadequadamente essa herança iorubá a todo o Estado da Bahia, o que historicamente não se justifica", continua a etnolingüista.

É por essas e outras que a idéia de que todo afrodescendente baiano tem a ver com os iorubás-nagôs ainda é recorrente. Contribuindo para conservar o mito da Aruanda - a África mítica, única, sem diversidade cultural, religiosa e lingüística -, e da "baianidade nagô".


Regina Bochicchio